A Ordem no Universo segundo Aristóteles e Santo Tomás de Aquino
Nota da Tradução: Revivo aqui uma tradução feita e publicada em 2018 na plataforma Medium. No primeiro plano, temos um trecho do livro 12 da Metafísica de Aristóteles e, em seguida, o comentário de Santo Tomás de Aquino em relação ao respectivo trecho. Como base para a tradução do texto de Aristóteles usei principalmente a tradução espanhola da edição da Gredos, traduzida por Tomás Calvo Martinez.
Aristóteles, Metafísica, livro 12, capítulo 12 (1075a10 ss.)
É preciso considerar também de que maneira a natureza do todo possui o Bem e a Perfeição: se como algo separado e existente por si mesmo e em si mesmo, ou como sua ordem. Ou, talvez, de ambas as maneiras, como em um exército. Ora, o bem do exército está em sua ordem, mas também está em seu general. Com efeito, com maior razão este bem está no general, porquanto o general não existe por causa da ordem, mas a ordem por sua causa.
Todas as coisas — peixes, aves e plantas — estão ordenadas conjuntamente de certo modo, mas não da mesma maneira. Contudo, seus respectivos estados não são tais que uma coisa não venha a ter relação com outra; mas, ao contrário, alguma coisa sempre vem a ter alguma relação com outra. Mas todas as coisas estão conjuntamente ordenadas a um fim único, assim como ocorre em uma família: aos livres está permitido fazer muito poucas coisas segundo seu próprio capricho, pois antes a maioria das suas ações estão ordenadas; por outro lado, os escravos e os animais colaboram pouco para o bem comum e muitas vezes agem segundo seus caprichos, pois tais princípios constituem a natureza de cada um. Refiro-me, por exemplo, ao fato de que todas as coisas terminam necessariamente por distinguir-se; e na medida em que se distinguem por um lado, há, pelo outro, outras maneiras nas quais todas as coisas participam para contribuir para o todo.
Santo Tomás de Aquino, Sententia Metaphysicae, lib. 12 l. 12 n. 1-11
Após o Filósofo ter mostrado como o Primeiro Motor é inteligente e inteligível, aqui ele busca mostrar de que maneira o Primeiro Motor é um bem e é desejável. E, para mostrar isso, ele o faz de duas maneiras. Primeiro ele mostra, segundo sua própria opinião, se há um bem no universo. Depois, segundo a opinião de outros, onde ele diz: “Por outro lado, não convém passar por alto todos os impossíveis ou absurdos que sobrevêm àqueles que explicam…”
Quanto ao primeiro ponto ele prossegue de duas maneiras. Primeiro ele levanta uma questão. E em segundo lugar ele a resolve “Ou, talvez, de ambas as maneiras, etc.” Essa questão surge daquilo que foi dito anteriormente, que o Primeiro Motor move à maneira de um bem desejável. Pois o bem, enquanto fim de algo, é duplo. Com efeito, o fim é extrínseco a algo que tende a esse fim quando, por exemplo, dizemos que um lugar está no fim daquele que se move para aquele lugar. Há também o fim que é intrínseco, como é a forma que está no fim da geração e da alteração, ou a forma já alcançada, que é um bem intrínseco daquele cuja forma é possuída. Mas a forma de qualquer todo, que por meio da ordenação das suas partes é una, é ordem desse mesmo todo: donde se segue que a forma é o bem desse todo.
Então o Filósofo procura saber se a natureza do conjunto do universo possui um bem e uma perfeição, ou seja, um fim que lhe seja próprio e que esteja distinguido e separado do universo, ou se o universo possui um bem e uma perfeição na ordem das suas partes da maneira que o bem de alguma coisa natural é sua forma.
Em seguida, quando ele diz “Ou, talvez, de ambas as maneiras, etc.” ele resolve a questão proposta. E ele o faz de duas maneiras. Com efeito, em primeiro lugar ele mostra que o universo possui um bem separado e um bem da ordem. Em segundo lugar ele mostra como as partes do universo têm em si uma relação com a ordem quando ele diz: “Todas as coisas estão ordenadas”. Então, em primeiro lugar ele diz que o universo possui o bem e o fim de duas maneiras. Com efeito, há um bem separado, que é o Primeiro Motor, do qual dependem o céu e toda a natureza como seu fim e bem apetecível, assim como se mostrou. E porque é preciso que todos os seres, dos quais o fim é único, reúnam-se em sua ordenação ao seu fim, é necessário que se encontre uma ordem entre as partes do universo; e é assim que o universo possui um bem separado de si e um bem da ordem.
E assim vemos em um exército: porquanto o bem do exército está na própria ordem do exército e também em seu general, que comanda o exército; mas o bem do exército encontra-se mais em seu general do que na ordem mantida por esse exército, pois o fim é superior em bondade do que aquele que está ordenado ao fim: pois a ordem do exército tem como função cumprir o bem do general, ou seja, realizar a vontade do general na busca pela vitória; por outro lado, o bem do general não é em função do bem da ordem.
E porque a razão das coisas que são ordenadas ao fim é tirada do próprio fim, é necessário, portanto, que não somente a ordem do exército seja em função do general, mas também que venha dele a ordem do exército, pois a ordem do exército é em função do seu general. E também esse bem separado, que é o Primeiro Motor, é em si um bem maior que o bem da ordem que se encontra no universo. Assim, toda a ordem do universo é em função do Primeiro Motor, de modo que na ordenação do universo explica-se o que está na inteligência e na vontade do Primeiro Motor. E é assim que é necessário que do Primeiro Motor venha toda a ordem do universo.
Em seguida, quando diz “Mas todas as coisas”, ele mostra de que maneira as partes do universo têm relação com a ordem. Ele diz que todas as coisas que se encontram no universo estão de algum modo ordenadas ao conjunto, mas nem todas se relacionam da mesma maneira, como por exemplo os peixes, as aves e as plantas. E embora elas não estejam dispostas da mesma maneira, isso não significa que a maneira que estão ordenadas as impeça de se relacionarem umas com as outras; ao contrário: há alguma afinidade e alguma ordem entre uma parte e outra. Assim as plantas existem em função dos animais, e os animais em função dos homens. E que todas as partes estejam reciprocamente ordenadas, fica claro a partir de que todas as coisas estão simultaneamente ordenadas a um mesmo fim.
Mas que todas as coisas não estejam ordenadas de maneira similar fica claro pelo exemplo a seguir. Com efeito, em qualquer casa ou família ordenada encontram-se diversas gradações; assim, abaixo do pai de família, em primeiro lugar está o primogênito, e depois em outro grau estão os servos, e no último grau encontram-se os animais que têm utilidade na casa, como os cães e animais da mesma categoria. Com efeito, esses graus dispõem-se de maneiras diversas na ordem da casa, que por sua vez é imposta pelo pai de família que a governa. Não convém, portanto, aos filhos que façam algo ao acaso e desordenadamente; mas sim que todas as coisas, ou muitas delas, sejam feitas ordenadamente. Tal não se dá com os servos ou com os animais, pois eles pouco participam desta ordem que é em vista do bem comum; mas, ao contrário, dentre os servos e os animais encontram-se muitas coisas que são deixadas ao acaso. E é assim porque eles possuem pouca afinidade com aquele que dirige a casa e que busca o bem comum dela.
E como a ordem na família é imposta pela lei e pela instrução do pai de família, que por sua vez está no princípio de cada grau de ordenação da casa, visto que ele leva a cabo as coisas que pertencem à ordem da casa; da mesma maneira, a natureza presente nas coisas naturais é o princípio pelo qual cada uma das coisas executa aquilo que lhe pertence em relação à ordem do universo. Com efeito, assim como aquele que está na casa tende a fazer algo por preceito do pai de família, da mesma maneira as coisas naturais tendem a fazer algo por causa da sua própria natureza. E a própria natureza de cada coisa natural possui uma certa inclinação que lhe é dada pelo Primeiro Motor, que ordena-a ao próprio fim que lhe convém. E disso fica claro que as coisas naturais agem em função do fim, ainda que não conheçam esse fim, pois é da primeira inteligência que elas obtêm essa inclinação ao fim.
No entanto, nem todas essas coisas estão ordenadas da mesma maneira em relação a esse fim. Há, com efeito, algo comum entre todas elas; porquanto é necessário que todas as coisas cheguem àquilo que lhes distinga, ou seja, que elas possuam operações próprias e separadas e que também sejam distinguidas umas das outras pela substância; e quanto a isso, a ordem não se ausenta em ninguém. Mas há certas coisas que não apenas possuem essa distinção, mas também existem de tal maneira, que todas as coisas que se encontram nelas participam do todo, ou seja, estão ordenadas ao bem comum do todo. Com efeito, isso se dá naqueles em que nada está fora da sua natureza e nem deixado ao acaso, mas tudo procede conforme a ordem que convém.
Com efeito, está claro que, conforme dissemos, todas as coisas naturais estão ordenadas ao bem comum conforme o obrar que lhe convém naturalmente. Assim, aquelas que nunca falham em seu obrar devido e natural participam perfeitamente do todo. Mas aquelas coisas que às vezes falham em seu obrar devido e natural não participam perfeitamente do todo, como é o caso dos corpos inferiores.
Em suma, a resposta é que a ordem requer duas coisas: a distinção entre aqueles que são ordenados e a participação dos distintos no todo. Quanto à primeira, a ordem encontra-se infalivelmente em todas as coisas; mas quanto à segunda, a ordem encontra-se infalivelmente em alguns que estão mais altamente e mais proximamente ao primeiro princípio, como é o caso das substâncias separadas e dos corpos celestes, em que nada decorre por acaso ou contrariamente à natureza. Em alguns, porém, a ordem falha; é o caso dos corpos, onde às vezes as coisas decorrem por acaso ou contrariamente à natureza. E assim ocorre com os corpos por causa do afastamento do Primeiro Princípio, que é sempre o mesmo.
Fim do trecho.