“Tunc Jesus ductus est in desertum a Spiritu, ut tentaretur a diabolo.
Então Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, para ser tentado pelo demônio.” (Mt. IV, 1)
I. Estranha maneira de guerrear! Ganhar fugindo e perder lutando. É certo que a nossa vida é uma guerra contínua: Militia est vita hominis super terram (Job VII, 11). E alistar-se sob os estandartes do Crucificado é o mesmo que expor-se ao combate com muitos inimigos; mas oh, quão diferente é a arte militar de Cristo da arte militar do século! Nesta última não há ação mais indigna do que a fuga. Por causa dela, tiram-se os cinturões militares dos soldados, e os fugitivos são marcados com a cicatriz da ignomínia eterna; por outro lado, a ação mais gloriosa da milícia de Cristo é a fuga; por causa dela, cantam-se os triunfos dos heróis da Igreja, e são honradas suas destras com palmas. Para que ninguém se envergonhe de fugir, o nosso capitão dá-nos Ele mesmo um místico exemplo: tendo de combater o seu adversário, procura um lugar desabitado e foge para o deserto: Ductus est in desertum a spiritu; não quer lutar com mais do que um, ou seja, apenas com o demônio: ut tentaretur a diabolo. Oh, grande mistério! O Filho de Deus, que está tão bem armado, fortalece-se no deserto, e está disposto a lutar com um e não mais do que isso; e o homem, que é tão fraco, procura o inimigo em casa, nas vigílias, nos bailes, nas conversas, e atreve-se a lutar com muitos, desafiando não só o diabo mas também as ocasiões. Que temeridade é essa? Abri os olhos, cegos voluntários deste mundo; aprendei com o Salvador esta máxima da salvação: que nas batalhas do inferno, aquele que mais foge, mais se aproxima do triunfo, e aquele que é mais eremita está mais bem defendido, e aquele que é mais solitário é mais santo: In desertum, in desertum, para o deserto, para o deserto. Vamos também esconder-nos numa gruta remota para escapar de todas as ocasiões de pecar. Não sois vós que vos queixais todos os dias de tantas tentações, que já não podeis respirar, que já não podeis viver? Oh, então por que é que vos tentais a vós próprios, expondo-vos todos os dias a tantas ocasiões, fomentando práticas, amizades, correspondências, jogos, teatros, bebedeiras e folias? Como é que no meio de tantos perigos tendes tanta segurança, e no meio de tão frequentes quedas tão grande presunção? Fiquem comigo nesta manhã para que, para refrear a vossa liberdade e iluminar ao mesmo tempo a vossa cegueira, eu vos mostre que o maior perigo da tentação é expor-se à ocasião, e este será o primeiro ponto; e que o maior remédio da tentação é fugir da ocasião, e este será o segundo ponto. As coisas são assim: quem não foge perde, quem foge ganha. Comecemos.
II. É um axioma dos mais eruditos teólogos que nas tentações mais veementes e graves é necessária uma ajuda especial da graça de Deus para as vencer; assim Suárez se pronuncia, após consultar quase todos os eruditos modernos e antigos, dizendo que, em circunstâncias de tentação grave, sem uma ajuda especial da graça nós caímos: Liberum arbitrium speciali auxilio gratiae destitutum sine dubio succumbet. E diz que essa frase é muito comum entre os teólogos: Jam est inter theologos communiter recepta. Além disso, os filósofos morais dizem-nos que qualquer objeto, quando está presente, é muito mais eficaz para mover a vontade do que quando está ausente; que ela se move mais com os seus traços vivos, aos quais chamamos de espécies próprias, do que com as cores sugeridas, as quais chamam espécies abstratas. E, de fato, o demônio, para mover Cristo Nosso Senhor, não lhe mostrou o mundo descrito num mapa, mas colocou-O no alto de uma montanha e o mundo diante dos seus olhos: ostendens illi omnia regna mundi. E, sem precisar raciocinar muito, cada um prova por si mesmo que, quando se tem sede ou fome, a sua sede é acesa e o seu apetite despertado mais por ver uma fonte de água viva, ou uma mesa carregada de alimentos delicados e fumegantes, do que por apenas olhar para eles pintados numa tela; pois o objeto presente tem esta qualidade própria que, pela sua vivacidade, arrebata os sentidos, cativa o intelecto e arrasta a vontade. Tendo estabelecido conjuntamente esses dois fundamentos da teologia e da filosofia, trabalhemos sobre eles através do nosso discurso. Se a nossa alma é tão fraca que cai em circunstâncias de grave tentação sem a ajuda especial de Deus, ela não resiste, porque é lânguida e enferma (e por aqui entendemos se tratar da ferida deixada pela culpa original, que deixou sua razão embotada, sua vontade mal inclinada, e suas paixões em revolta) de tal maneira que na aproximação de alguma grande tentação, mesmo sem que um objeto esteja presente, mesmo sem uma ocasião, ela mesmo assim está em perigo: Vides, disse Santo Agostino, vides quid intus confligat in te, de te, adversum te. Se temos dentro de nós aquilo que faz guerra contra nós: In te, de te [NdT.: ou seja, a ferida do pecado original]; ainda que estejamos retirados e solitários, não estamos isentos do perigo na tentação; o que dizer de alguém que, fraco, enfermo, sobrecarregado com tantos pecados antigos, em tal desvantagem de lugar, exausto de forças e na violência das paixões, sai para buscar mais ocasiões? Não é evidente o precipício? Agora veja se é verdade o que vou lhes mostrar: que o maior perigo da tentação é expor-se à ocasião, e aquele que não foge, perde.
III. Em primeiro lugar, gostaria de saber em que se baseia essa confiança insensata daqueles que vão à ocasião de pecar com o espírito de não pecar, para ver se se trata de uma esperança justa ou de uma pretensão temerária. Parece-me que três suposições muito falsas sustentam essa crença tola. Essas pessoas supõem que a ocasião não tem tanto vigor a ponto de precipitá-las; elas supõem que têm força suficiente para resistir, e supõem que Deus as ajudará com sua graça; portanto elas confiam demais na ocasião, confiam demais em si mesmas e confiam demais em Deus. Mas como se enganam a si próprias! Quanto à ocasião, quem não sabe que é esse rochedo infame onde naufragaram tantos homens santos, que eram como tantos cedros do Líbano, habituados a lutar com os turbilhões das mais ferozes tentações, e colocados nas ocasiões em que caíram? “Quantos eu vi com os meus próprios olhos, dizia Santo Agostinho, caírem prostrados por causa da ocasião”, homens que tinham sido pastores do povo, mestres do mundo e exemplos de santidade, “de cuja reputação nada mais se suspeitava do que de um Ambrósio ou de um Jerônimo”? Mas caíram miseravelmente: multos corruisse vidi, de quorum casu non magis dubitabam, quam Ambrosii, aut Hieronymi. Dizem que na Etiópia havia uma feiticeira tão astuta e tão bela nas suas feições, que a quem quer que contemplasse o seu rosto, inevitavelmente ela roubava o coração; e eu digo que esta é uma propriedade comum a todas as ocasiões, como o próprio Deus determinou para o povo judeu, ao lidar com mulheres estrangeiras: certissime avertent corda vestra, porque elas certissimamente vos perverterão os vossos corações (1 Rs. 11, 2). Porque, no deleite que representam, lisonjeiam de tal modo os sentidos, que, seduzida a razão, a vontade se rende e cai em todo o mal. E aqui está o engano daqueles que se dão a entender que podem colher do deleite das ocasiões somente o fruto de uma satisfação inocente, sem consentir em qualquer mal. Irei a essa peça de teatro, diz ele, não por maldade, mas para inteirar-me da excentricidade do invento, da novidade do enredo e da doçura da canção; lerei esses romances, não por maldade, mas apenas para absorver a nobreza do pensamento, a elegância do discurso e a pureza do texto; Irei àquele velório, àquela conversa, e tratarei livremente disto e daquilo, não por mal, mas para passar a noite em genial civilização, em divertimentos indiferentes e amor platônico. Calai-vos, peço-vos, calai-vos, porque vós não discorreis, mas delirais, não tendes confiança, mas temeridade e presunção; e por isso eu digo que caireis em todo o mal; caireis, porque é tão difícil separar o ‘pecado’ da ‘ocasião do pecado’, que nem o Eterno Pai provou assim os seus anjos no céu, seu divino Filho ou os seus apóstolos na terra. Assim que os anjos no céu pecaram, Deus imediatamente abriu o inferno subterrâneo, e mergulhou-os nele. Por que tão imediatamente? Porque não confiou, diz Rupert, o abade, sobre o Gênesis: Divisit lucem a tenebris; não confiou nem por um momento os anjos maus aos anjos bons, para que não fossem subvertidos: Ne pessima perfidorum societas caeteros quoque in perfidiam et rebellionem arriperet, para que a péssima companhia dos maus também não os levasse à traição e à rebelião. Reparai em vós que dizeis: eu vou à vigília, à conversa, mas não para o mal; o próprio Deus não considera seguro os seus anjos, mesmo no paraíso e sob seus olhos, nem por um momento de tempo, não em outra ocasião que não seja a proximidade com os anjos maus; e vós quereis perturbar, criar problemas, lidar com toda a liberdade com aquele que só é diferente do diabo nisto: que o diabo é mero espírito, e ele é todo carne, e depois a tal liberdade chamais de “civilização brilhante”, eh? Primeiro: Judas pecou e cometeu uma traição tão grande, e imediatamente Cristo Nosso Senhor expulsou Judas do sagrado colégio apostólico para que, com o seu exemplo, não se subvertessem os outros apóstolos: ne a societate tam pessimi viri, diz o Pe. Isaac, alii aberrarent. Ora, vejam quanto caso Deus fez da força da ocasião, quando não confia nem nos seus anjos do céu e nem nos seus apóstolos da terra. Ó... eu converso apenas para dar pasto à visão. Muito bem: mas não prevê a cadeia de precipícios a que a visão desse objeto o transporta, porque a visão é ordinariamente sucedida pelo pensamento, o pensamento pelo prazer, o prazer pelo consentimento, o consentimento pela operação, a operação pela prática, a prática pela necessidade moral, a necessidade pela impossibilidade moral, a impossibilidade pelo desespero e a condenação. Ó ocasiões malditas! Vede se convém dizer que as tentações sem ocasião são balas de canhão sem bola, mas as tentações unidas à ocasião são precipícios, precipícios para as pobres almas.
IV. “Já percebi, repete aqui um libertino, que este é um sermão que nos quer encher a cabeça de escrúpulos. Que tantos medos, que tantos desânimos? Por isso, será melhor para todos nós ou partirmos para algum claustro, e fazermo-nos eremitas, ou renunciarmos para sempre ao paraíso; porque se o mal das oportunidades é tão certo como se faz crer, e estar no meio das oportunidades é um mal necessário para quem vive no mundo, então aqui estamos nós em desespero, sob o título de querermos ser emendados; ah, todas essas coisas são bichos-papões pueris; não é verdade que haja tanto mal nas oportunidades como se diz; basta enfrentá-las com a boa intenção de não aderir aos seus incentivos, já que não nos falta força suficiente para os repelir: e, portanto, o que é a coragem de uma mente resoluta dificilmente é chamado de presunção.” Aqui chegamos à segunda suposição não menos falsa e presunçosa que a primeira. Não é verdade que há tanto mal nas oportunidades quanto se diz? E com que base pronunciais uma proposição que um demônio não ousaria pronunciar sem hesitação? Talvez porque pensais que tendes força suficiente para resistir, não é verdade? Mas, dizei-me, tendes as vossas paixões tão bem domadas como as de tantos santos e servos de Deus? E, no entanto, estes temiam-nas, e, ademais, escondiam-nas nos desertos, nos túmulos e, mesmo aí, não julgando-se seguros, viviam sempre tristes, pensativos, espantados, surdos, cegos, mudos, mal vestidos, mal alimentados, em contínua vigilância e tormento. Fico espantado sempre que penso na resposta que S. Jerônimo deu a Vigilâncio, que lhe perguntou o que temia e por que é que, em vez de viver na cidade, tinha ido viver em um eremitério? Tu sabes o que temo — respondeu o santo penitente — temo tantos perigos, entre os quais tu vives, temo os contrastes da ira, temo as conversas ociosas, temo a avareza tenaz, temo os olhares lascivos; e como se não bastasse tudo isto, não se envergonhava de acrescentar, a ponto de dizer estas palavras precisas, que, se não fossem da sua boca, eu não ousaria pronunciar: temo o encontro com as mulheres públicas, com as meretrizes públicas: timeo ne capiat me oculus meretricis. E instando-o Vigilâncio dizendo que se tratava de uma fuga covarde, e não de uma vitória gloriosa; paciência, acrescentou Jerônimo, paciência; devo confessar a minha própria fragilidade: fateor imbecillitatem meam: não me dá ânimo para entrar em combate com inimigos tão poderosos, não tenho forças para resistir a tanto. Que dizeis agora: são escrúpulos ou verdades poderosas? Um Jerônimo desfeito pelas penitências confessa que não tem forças para resistir a um encontro fortuito e indesejado. E tu, com as tuas paixões tão vivas, os teus sentidos tão licenciosos, o teu corpo tão mole e a tua alma tão delicada, queres que eu entenda que os teus sentidos estão tão sujeitos à razão, que podes olhar para esses objetos com toda a liberdade, sem despertar os teus desejos, escutar esses discursos lascivos sem sentir os seus estímulos, ficar e namoricar com ela sem dar azo a maus pensamentos, praticar a familiaridade naquela casa sem passar os termos da amizade, ter sempre diante dos olhos esses quadros lascivos sem se deleitar lascivamente com eles? Oh, que presunção cega é esta! O mirabile verbum, et omni stupore dignum! exclama o meu Bernardino de Siena; é o mesmo que dizer que vou andar sobre a água e não me afundarei, que estarei junto ao fogo e não me aquecerei, que vou andar sobre as brasas e não me queimarei: Ligabit quis ignem in sinu suo, et vestimenta non comburet. Ah, cegos, cegos! Pecareis, pecareis, pecareis, caireis em toda a espécie de iniquidade, andando sempre, segundo o Eclesiástico, em conjunto com uma tal presunção com o pecado: Vidi praesumptionem cordis eorum, quoniam mala est, et cognovi subversionem eorum: Ele vê que a presunção do seu coração é má, e reconhece que o seu fim é deplorável (Eclo. XVIII, 10).
V. “E, no entanto, meu padre, não é assim, dizeis; para vós outros, retirados para os claustros, cada fantasma faz uma espécie, cada sombra faz um corpo, cada picada faz uma ferida; mas nós, que vemos e ouvimos tudo, habituamo-nos a isso, nem nos ressentimos por tão pouco”. Alegro-me: um anjo desceu para vós do céu à terra para equipar os vossos lombos com uma cinta impregnada de inocência, como um Tomás de Aquino? Ou trespassaste a concupiscência com espinhos, como um Bento, ou extinguiste os seus ardores nas neves, como o meu pai S. Francisco? Mas estes temiam, e vós não temeis? “Nós não tememos, porque vamos por outro caminho, e não nos detemos tanto nele”. Ah... agora, quero dizer, come bem, bebe melhor, dorme em camas macias e fofas, e depois, sem morder a língua, sem grilhões entre os pés e cataratas nos olhos, fala, vê, ouve, trata com toda a liberdade, porque muitas vezes com demasiada aprendizagem se vê o mal, onde não há; não quiseste dizer isto? “De fato, isto”. Agora dá-me licença para aparecer à entrada das grutas dos anacoretas mais famosos, e aí exclamar em alta voz: “Ó Hilário, ó Pacômio, ó Arsênio, que fazeis? Saí dos vossos eremitérios, lançai fora o vosso cilício, deixai os vossos desertos, vinde para o mundo... Isso nunca será verdade... Por mim, vinde, porque a idade da inocência voltou; nem me ides dizer que as paixões estão vivas, que as oportunidades estão próximas e que a fragilidade é grande; admiro-vos que homens como vós tenham tanto medo! Ao menos olhai para fora, olhai para a juventude fresca, que não se macera com penitências como vós, não dorme no chão como vós, não come ervas silvestres, nem bebe água fria como vós; mas a juventude fresca, vigorosa, espirituosa, bem alimentada, bem vestida, está no meio das ocasiões, flerta, brinca e joga com o diabo no peito, e não tem medo, e vós temeis?” “Sim, tememos e queremos temer até à morte; temos demasiados exemplos fatais nos nossos olhos. Um Davi tão santo caiu por causa de um simples olhar; um Salomão tão sábio caiu por causa de uma paixão indomável; um tal príncipe dos apóstolos caiu sem outro obstáculo que um miserável respeito humano; como não havemos de temer, nós que somos tão fracos, tão enfermos? Sim, sim, queremos temer, queremos temer, e queremos a todo o custo fugir das ocasiões para assegurar a nossa salvação eterna.” Assim respondem esses santos anacoretas; e vós, o que dizeis? Que delírio frenético é o vosso? Dizeis que estais bem, porque não conheceis o mal, e ardeis em febre maligna e mortal; pois S. Bernardo faz-vos compreender que, sendo a nossa natureza tão enferma e as nossas forças tão fracas, é maior milagre estar firme nas ocasiões e não cair, do que ressuscitar os mortos: Majus miraculum est inter vehementes occasiones non cadere, quam mortuos suscitare. Esta verdade ser-vos-á confirmada por um exemplo, demasiado triste, descrito por São Gregório Papa. Um bispo africano, durante a perseguição dos vândalos contra a fé de Cristo na África, deixou que lhe arrancassem a língua dos maxilares, em vez de deixar de pregar o Evangelho de Cristo. Deus recompensou a sua perda com um milagre, fazendo-o falar tão depressa sem língua como se a tivesse. No entanto, depois de ter obtido tão bela vitória sobre os bárbaros, depois de ter sofrido tão glorioso martírio, depois de ter ganhado tantas almas para Deus com a pregação, trouxe consigo, em triunfo, a distinta maravilha de falar sem língua, que causava grande espanto e devoção a todos os que falavam com ele, porque em cada respiração articulava um milagre. Mas com esse milagre contínuo na boca, porque imprudentemente admitiu nos seus aposentos uma jovem que vinha pedir-lhe conselhos sagrados, perdeu a sua inocência por um mau prazer, perdeu o seu mérito, perdeu o seu triunfo e perdeu o seu milagre: Mox in luxuriam lapsus est privatus dono miraculi. Deus imortal! Um prelado, um mártir, um pregador tão zeloso, um santo que leva milagres na boca caiu na ocasião de pecado! Ide agora vós, ide e dizei: “Sei até que ponto posso comprometer-me, não me faltam forças para resistir”. É assim que Deus castiga a presunção: deixa-a mergulhar em pecados enormes. Nem há desculpa que possa escusar o teu mau procedimento, porque ou tu, quando te expões a essa ocasião, prevês o perigo de pecar, ou não; se não, a tua imprudência é imprudência, e cais por má conduta; se o prevês, é tua a presunção, e cais por temeridade; o que, porém, quer de um modo, quer de outro, és digno de castigo, nem Deus te assistirá com a sua graça, que é a tua última suposição, e o teu último recuo.
VI. Pois, de fato, chegamos ao limite. Ou há o auxílio da graça, ou não há. Se há, por que tanto medo e sofismas? Onde faltarem as nossas forças, a graça de Deus suprirá. A graça de Deus compensará, não é? Vamos, vamos, eu concedo que a ajuda de Deus existe; mas parece-vos razoável que alguém prometa receber de Deus uma ajuda maior e mais abundante quando, contra a vontade de Deus, se expõe mais à oportunidade de O ofender? Que Deus tenha mais cuidado com aqueles que se afastam mais do seu cuidado? Que Deus assista com maior graça aqueles que, ao colocarem-se em risco de a perder, mostram que não apreciam a sua graça? Esperais então que Deus faça um milagre, mantendo-vos ilesos no meio dessas ocasiões em que tantos e tantos são mergulhados? É uma arrogância demasiado descarada: nimium praeceps est qui transire contendit, ubi comperit alios cecidisse, disse São Cipriano. E então, onde é que se baseia essa certeza de que Deus tem de o ajudar com a sua graça? Nas Escrituras? Certamente que não; na verdade, encontrareis na Sagrada Escritura uma centena de exemplos de que, quando um fim pode ser alcançado por um meio mais comum, não é o estilo de Deus fazer milagres. Ele ressuscitou Lázaro dos mortos e, ao mesmo tempo, poderia ter explodido a lápide; mas não, quis que os espectadores a levantassem: tollite lapidem, porque isso podia ser feito sem milagres. Da mesma forma, o anjo quebrou as correntes de Pedro, quebrou os grilhões, mas não o ajudou a vestir-se, porque Pedro poderia ter feito isso sozinho, sem milagres. Do mesmo modo, o anjo salvou Paulo do seu barco no meio das tempestades, salvou os marinheiros, mas não o ajudou a desembarcar, porque, para chegar à terra, Paulo podia chegar com a sua própria indústria sem milagres. Falai da mesma maneira de outros sucessos, que encontrareis espalhados pelo Evangelho, e depois dizei-me: se podeis por vós mesmos retirar-vos daquela casa, deixar aquela companhia e não aparecer mais naquela conversa, por que pretendeis que Deus faça um milagre e vos conserve ilesos no meio daqueles induzimentos, em que voluntariamente entrastes? Não conheceis o engano? Onde, então, baseais essa ousadia, essa maldita confiança? Talvez nos exemplos de outros? Nem uma coisa nem outra; encontrareis nas Escrituras que Deus preservou Judite da ira de Holofernes, preservou Susana das concupiscências impuras dos velhos, preservou um grande número de tenras virgens expostas à violência de tiranos em lugares infames, mas não encontrareis que nenhuma das heroínas acima mencionadas tenha entrado em tais perigos por seu próprio capricho; e, portanto, imprimi em vossos corações este documento mais notável: Aquele que, por sua própria escolha, se expõe à oportunidade de pecar e ofender a Deus, nunca tem o patrocínio especial de Deus. Quem, então, pode esperar por essa ajuda? Aquele que se coloca ali pela obrigação do cargo, aquele que se coloca ali pelo mandamento da obediência, aquele que se coloca ali pela lei da caridade: Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis, Deus mandará os seus anjos para que te guardem em todos os teus passos. Ouviram isto? Onde serás amparado, onde serás socorrido? Nos precipícios, ainda não; nas ruas, in viis, e nos caminhos que são só vossos: in viis tuis. Mas se ficares entre penhascos, entre rochedos, entre precipícios, cairás: Ecce spes ejus frustrabitur, disse pela boca de Jó: et videntibus cunctis praecipitabitur. Eis que se enganará nas suas esperanças; a vista do monstro bastará para o aterrar (Job XL, 28).
VII. E para que vejais a prova de que aquele que se expõe voluntariamente ao perigo cai, ou melhor, precipita-se, e Deus não estende a mão para o socorrer com a sua graça, vinde comigo à solidão da Palestina. Ali, encolhido numa caverna, está um anacoreta descalço, de semblante magro como se fosse um cadáver semivivo envolto num saco felpudo; é Tiago, tão célebre na História. A sua barba longa e ressequida e o seu semblante magro mostram que é um veterano da milícia de Cristo; atingiu um tal grau de santidade que faz prodígios e, com o poder da sua voz, expulsa demônios de corpos possessos, e a sua fama corre por toda a parte, sendo canonizado como santo por todos. Eis o caso. Ele expulsa de uma donzela possuída o espírito maligno que a afligia, e é suplicado pelo pai dela para a manter durante alguns dias na sua cabana, a fim de a proteger ainda mais das artimanhas do demônio. O homem incauto admite esse perigo tremendo, e confia tanto na sua própria força como no auxílio da graça, que, embora se sente junto ao fogo, não se queimará; mas, oh, como está enganado! Satanás, que o vê na ocasião com aquela mulher dentro do eremitério, começa a bater em Tiago com sugestões impuras; E mais: triunfa sobre ele; o velho, o eremita, o santo, o operador de milagres, o triunfador de demônios é tão dominado por elas, que tira primeiro a honra da donzela e depois a sua vida. Ó, grande Deus, que estranho acontecimento é este! Não se quer acreditar, não se quer acreditar, se não se provar. Vai agora dizer que Deus o compensará com a sua graça; dá um impulso à tua audácia, respondendo: que grande desânimo! que grande medo! Se homens de espírito tão robusto caem, o que será de vós? Pelo contrário, esses homens caem porque têm muito medo e pouca experiência; acontece-lhes como acontece a quem passa por uma tábua um pouco estreita no vau de uma torrente furiosa; quem está habituado e corre com franqueza, passa com segurança; quem não está habituado e vai com medo, uma vertigem o assalta e ele cai. Que admira que um eremita solitário, habituado a conversar com os troncos da floresta, caia e que, por causa da sua imprudência, Deus não lhe dê a mão? Não é assim com quem tem um grande coração e tem a experiência de não ter caído muitas vezes; pode esperar o socorro de Deus, mesmo que se ponha de novo em perigo. Oh, que ousadia imprudente! Foi assim que Sansão perdeu, e é assim que se perde um sem número de cristãos. Já sabeis que Sansão venceu várias vezes os seus inimigos com alegria; mas, tendo-se orgulhado das suas vitórias, “serei salvo”, disse ele, escarnecendo no seu coração, quando Dalila saltou do seu colo e o atirou para os braços dos filisteus, “serei salvo como já fui salvo antes”: Egrediar sicut ante feci, et me excutiam (Jd. XVI, 20). As mandíbulas das éguas são raios nas minhas mãos, as portas da cidade nos meus ombros são palha, as torções mais firmes nos meus braços são teias de aranha; quem é que pode comigo? Egrediar, egrediar sicut ante feci, desta vez, voltarei a sair com glória. Será que ele saiu, meus cristãos, será que ele saiu? Sabeis que sim; mas como? Acorrentado, vilipendiado, condenado a fazer o ofício de um jegue puxando o moinho. Oh, quantos samsonitas que, tendo-se ensoberbecido por causa de alguma ocasião má passada com uma certa suposta inocência, porque não houve consumação do pecado, enfrentam tudo com temeridade, e, sem se importarem com os seus pensamentos, divertem-se com dalilas, batizando com o título de inocente galanteio, civilização, bondade, e modelam esses tropeços, que no fim os sepultam sob ruínas, oh, quanto piores que as de Sansão, porque são ruínas eternas!
VIII. Agora dizei o que quiserdes; a experiência mostra o contrário; ou quereis que acreditemos, ou não; é assim que o provamos. Mas se o Espírito Santo diz: Qui amat periculum, peribit in illo, aquele que ama o perigo perecerá nele (Eclo. III, 27). “Tu ocupas-te de explicar a Escritura; nós temos a experiência do contrário, dizeis; de modo que esta experiência deve ser respondida por outras experiências”. Vinde comigo, por amor de Deus, olhai para aquele bairro, para aquela jovem que se atira e namorica todo o dia, ora à porta de casa, ora às janelas; vede como ela trata livremente aquele pequeno cérebro que anda para cima e para baixo naquela rua com os olhos sempre abertos, meditando na opera tenebrarum, na obra das trevas. “Ora, padre, não murmureis, porque tudo se faz com um fim santo, isto é, com o fim do santo matrimônio”. Muito bem; mas, entretanto, antes de o pároco intervir nos casamentos, administra batismos; não é esta uma experiência frequente nos nossos tempos? Passemos à frente. Naquela casa, há um baile, um velório, aquela pequena comédia; aquelas pobres garotas são arrastadas para lá à força, e veem que todos os gestos imundos são aplaudidos, todos os lemas obscenos são louvados, veem olhares, veem acenos, veem o que não devem ver, e aqui, em público, não se pode dizer; detende-vos um pouco à porta daquela casa, diz Jerônimo, observai todos os que saem, e vereis que não mudam nada em relação aos que entraram: Adulterium discitur, dum videtur, et quae pudica ad spectaculum matrona processerat, revertitur impudica: O adultério é aprendido quando visto, e a casta mãe de família que vai ao espetáculo volta impura. Não é esta a experiência que se vê todo o dia? Aquele jovem pega na mão um romance, um poema; começa a lê-lo por curiosidade, e depois por gosto, e depois serve-lhe de livro para meditar, mas sem mal nenhum, só que começa a cortejar, e vai ter com aquela jovem que toca e canta, e canta bem! faz-nos apaixonar pelo paraíso; não é assim? Claro que sim, mas pelo paraíso de Maomé. Quereis brincar, mas aquele jovem mantém-se tão ilibado como um lírio. Mas, entretanto, alguns dias depois, ouve-se que ele contraiu uma prática indigna: ele rouba a casa, ataca o pai e a mãe e vira a casa de pernas para o ar. Oh, fizeram-lhe algum mal! Sim, é claro que houve maldade, mas desse romance, dessa vigília, desse comércio livre nessa casa infame... não é esta a experiência que se vê a toda a hora nas famílias? “Tem razão, padre, repreenda-os também a eles, a esses jovens atrevidos, com as veias cheias de enxofre, e que querem valorizar-se junto ao fogo; quem admira então que se incendeiem? Eu, porém, dizeis, já estou velho, tenho neve na cabeça, já não sou capaz de alimentar o fogo nas minhas entranhas; se for à procura de algum divertimento, não creio que me acusem de uma imprudência demasiado ousada”. Estás velho, já o vejo; mas onde aprendeste que ser velho é ser impecável? E que fogo é mais lânguido do que aquele fogo de que fala o segundo livro dos Macabeus, no primeiro capítulo, enterrado pelos sacerdotes numa cisterna seca? Ao regressarem do seu longo exílio, já não encontraram fogo, mas uma fossa de água turva e putrefata: Non invenerunt ignem, sed aquam crassam (2 Mac. I, 20). No entanto, essa água exposta aos raios do sol abandonou a putrefação que a degradava e voltou a ser fogo, começou a brilhar, a rastejar, a arder, e não só se tornou fogo, mas um grande fogo: ut tempus affuit, quo sol refulsit, qui prius erat in nubilo, accensus est ignis magnus (2 Mac. I, 22). Estás velho, tens nas tuas entranhas já não fogo, por assim dizer, mas água turva; não confies nessa água, exclama um sábio comentador: Nolite fidere huic aquae, ela é filha do fogo; ela é fogo: soboles ignis est. Se lhe mostrares um raio de sol, oh que ardores! oh que chamas! Meu velho, não sei se, ao falar assim, estou fazendo uma previsão dos males que te esperam, ou contando histórias de males que aconteceram; não sei, tu sabes; o que sei é uma experiência demasiado verdadeira que não me podes negar, e aqui está. Neste momento, discutem-se duas coisas: a primeira é deixar de pecar depois de se ter colocado na ocasião, a segunda é deixar de se expor à ocasião; qual é a mais difícil destas duas coisas? É claro que é a primeira, ou seja, deixar o pecado depois de se ter colocado na ocasião, pois é necessário um milagre, como ouvistes de Bernardo; e a mais fácil é a segunda, isto é, deixar de se expor à ocasião. Ora, se não fazes o que é mais fácil, e embora tenhas prometido àquele confessor não ir mais àquela casa, não se relacionar mais com aquele companheiro, não aparecer mais naquela conversa, ainda não vês cumprido o teu propósito, e já são tantos os pasquins que dizes sempre a mesma coisa e nunca a realizas, aliás dizes que não podes passar sem ela; como queres que eu acredite que farás então o mais difícil, isto é, não pecar, uma vez que estás na situação? Pois bem... Embora mo jureis, não posso acreditar, diz Bernardo: Quod minus est, non potes, quod majus est, vis credam tibi? E tudo isso não está baseado na experiência mais frequente, mais fundada e mais autorizada do que a vossa?
IX. Antes de terminar, quero fazer um ato generoso, quero conceder às vossas suposições; seja, como dizeis, que podeis expor-vos à oportunidade de pecar sem pecar, que não vos faltam forças para resistir, que tendes a graça como vossa padroeira, que tendes experiência do contrário; mas baixais os olhos para a terra, e mirai aquele abismo aberto que absorve Datã com seus companheiros: aperta est terra, et deglutivit Dathan (Sl. CV, 17). Sabeis quem é este Datã? É um dos que, juntamente com o povo judeu, atravessou o mar de pé enxuto, e aqui está o epitáfio que Teodoreto gravou na borda do abismo: Qui per mare medium ambulaverunt, in terra absorpti sunt: aqueles que atravessaram o mar a pé sem se afundarem, naufragaram em terra firme. Apliquemo-lo a nós. Mas aquela solidão pensativa, aqueles fantasmas que permanecem na vossa cabeça, aqueles pensamentos noturnos, aquela viva apreensão do que ouvistes e vistes, aquela concupiscência solitária, como diz Tertuliano, não é para vós um vendaval? não vos faz naufragar em terra? Mas conceder-vos-ei ainda mais, a saber, que nem no momento da ocasião, nem depois, cometeis pecado; deveis, porém, confiar? Ah, pequeninos, abri os olhos e sabei que são emboscadas que o demônio vos faz por causa daquele passo em falso à beira da morte, daquelas ocasiões procuradas e buscadas, daqueles afetos alimentados e fomentados com tantas visitas, amores, recordações, saudações, discursos, cartas e embaixadas. Dizeis que agora não vos servem de nada; mas eu digo que não é assim. Mas que seja como dizeis; mas sabei que, se elas se escondem agora, na hora da morte todas essas ocasiões, todos esses fantasmas, todas essas reminiscências, todas essas correspondências se levantarão; e ai! que angústia elas porão o vosso coração! que aperto elas porão a vossa pobre alma! Então verás com as mãos, então confessarás que o maior perigo das tentações, aliás o único precipício das almas tanto na vida como na morte, é expor-se à ocasião. Imprime então no teu coração este axioma muito verdadeiro: quem não foge perde, quem não foge perde. Não acreditas? Que Deus vos dê a graça de não o tentarem. Descansemos.