Nota prévia da tradução: O texto a seguir é um prefácio à edição francesa do livro “The Anglo-American Establishment”, do historiador americano Carroll Quigley (1910-1977), onde ele conta a história da formação de um seleto grupo de aristocratas, políticos e personalidades anglo-americanas que se uniram, a partir do final do século XIX, para dali em diante moldar os rumos da política nacional e internacional de EUA e Grã-Bretanha. O que torna interessante este prefácio assinado pelo especialista em geopolítica, o francês Pierre Hillard, é que ele puxa o fio histórico da mentalidade que levou à formação desse grupo (chamado grupo Milner) de modo a inseri-lo dentro de um contexto muito mais amplo do que aquele que abordou ou imaginou Quigley no escopo original da obra. O preâmbulo de Hillard acaba por ser uma chave de abóbada da obra ao dar aquele toque teológico que costumeiramente falta às abordagens americanas que tratam da geopolítica globalista. Essa ausência teológica acaba por deixar o leitor muitas vezes sem uma compreensão universal e estável do fenômeno, deixando aberta a possibilidade para que se caia no conspiracionismo barato.
O grande livro de Carroll Quigley (1910-1977), professor da Universidade de Georgetown, The Anglo-American Establishment, publicado após sua morte em 1981, está agora disponível em francês graças à editora “Le Retour aux sources”. Podemos confirmar que esta publicação, Histoire secrète de l'oligarchie anglo-américaine, é realmente uma obra de saúde pública. Com efeito, graças ao trabalho desse acadêmico americano, agora é possível compreender melhor os mistérios desse opaco mundo oligárquico cujas ações foram decisivas para o mundo anglo-saxão e, por conseguinte, para todo o planeta. Com base em uma grande quantidade de material de arquivo, o autor desenvolve e explica como, na segunda metade do século XIX, as elites anglo-saxônicas elaboraram um verdadeiro plano de batalha para permitir que o Império Britânico, em associação com os Estados Unidos, estabelecesse uma hegemonia completa sobre o mundo. Esse desejo de poder e dominação foi obra de um punhado de homens intimamente ligados às altas finanças da City (Londres) e de Wall Street (Nova York). Surgiu daí um grupo inteiro, oriundo da alta aristocracia e da burguesia britânicas que se ligou a uma elite americana. Carroll Quigley fez um trabalho beneditino ao listar os nomes e delinear as ambições dessa “superclasse” ou “família tecnocrática” vanguardista, definida por estreitos laços sociais e familiares. O autor menciona muitos nomes: Cecil Rhodes, Alfred Milner, Lionel Curtis, Robert Brand, Geoffrey Dawson, Philip Kerr... (definidos em conjunto pelo autor como “Grupo Milner”), todos os quais compartilhavam da visão de governança mundial dentro de uma estrutura federal sob a égide da civilização anglo-saxônica. A criação das “Bolsas de Estudo Cecil Rhodes”, a partir de 1904, fez parte dessa política de recrutamento de estudantes que, inspirados por um espírito globalista, foram ajudados a ocupar cargos importantes no Estado para promover uma nova ordem mundial1. Carroll Quigley descreve os vínculos íntimos entre uma elite social anglo-saxônica onde o judaísmo, o mundo das finanças e seus grandes mestres, imbuídos de uma visão messiânica, trabalham lado a lado para operar uma imensa máquina: o Império Britânico. Ao ler este livro, pode-se fazer a seguinte pergunta: Por que esse ideal foi destinado ao mundo anglo-saxão? Por que essa visão de governança global não foi obra da França, da Espanha ou Alemanha? Para entender essa característica do mundo anglo-saxão, precisamos relembrar e ordenar uma série de fatos políticos, econômicos e espirituais.
Juntamente com a França, a Grã-Bretanha foi um dos primeiros países europeus a ter uma autoridade política estável a partir do século XI. A vitória de Guilherme, o Conquistador, em Hastings, em 1066, sobre a dinastia saxônica, selou os traços da nação inglesa. Como em todos os países europeus do período, a autoridade real era indivisível. Mesmo que ela fosse contida por poderes que lhe contrabalanceavam (guildas, representações institucionais, etc.), a realeza inglesa exercia suas prerrogativas dentro de uma estrutura europeia espiritualmente unida sob a égide do Papa. Com os meios técnicos disponíveis na época, o mundo inglês já podia ver além de sua própria ilha. As origens dessa dinastia na Normandia e a conclusão de alianças matrimoniais levaram seus governantes a estender o controle sobre territórios em uma diagonal de Cotentin à Aquitânia como parte do Império Plantageneta. De certa forma, essas foram as primeiras colônias administradas por Londres. Gerando poder e riqueza e buscando aumentá-los, a classe dominante inglesa queria derrubar a ameaça representada pela dinastia Capetiana. Com o aumento da tensão entre esses dois mundos, o rei João da Inglaterra se aliou ao imperador romano germânico, Otão IV, e a uma série de grandes senhores feudais, como Fernando de Portugal, para destruir o reino da França e dividir seus espólios entre eles. A vitória de Filipe Augusto da França sobre a ameaça anglo-germânica em Bouvines, em 27 de julho de 1214, foi um verdadeiro ponto de virada, dando ao rei da França a oportunidade de assumir os territórios continentais do Império Plantageneta, com exceção da Aquitânia. Além de reforçar de forma decisiva a autoridade real e permitir que os príncipes do Sacro Império Romano depusessem Otão IV, a vitória de Bouvines viraria a estrutura política e econômica inglesa de cabeça para baixo. Enfraquecido e desacreditado por sua derrota, João Sem Terra enfrentou uma revolta dos barões ingleses. Privados de grandes fontes de receita após a perda de territórios devolvidos ao rei da França, os barões ingleses impuseram a Magna Carta a João Sem Terra em 15 de junho de 1215. A Magna Carta garantiu os direitos feudais e as liberdades das cidades, reconheceu os direitos legais do indivíduo (habeas corpus) e instituiu controles sobre a cobrança de impostos, sendo-o agora somente com o consentimento da nobreza. Além disso, como escreve Jacques Attali, o texto concede liberdade de comércio a todos os estrangeiros, especialmente aos judeus2. No que diz respeito ao último ponto, essa medida foi temporária. Com efeito, os judeus foram expulsos da Inglaterra em 1290 por Eduardo I: uma medida de princípio que permaneceu em vigor até o Renascimento. Como podemos ver, a Magna Carta viu o surgimento e a afirmação de uma força proveniente de uma elite social em face da autoridade real inglesa. As descrições de Carroll Quigley sobre a da elite britânica no final do século XIX e na primeira metade do século XX só foram possíveis devido ao ato preparatório da revolta dos barões ingleses em 1215.
Entretanto, a ascensão ao poder dessa oligarquia inglesa foi possibilitada por um fator religioso. A luta entre a Igreja e a Sinagoga tomou um rumo especial na Espanha e em Portugal. O papado teve de lutar contra a infiltração de judeus que haviam se convertido falsamente ao catolicismo, conhecidos como marranos ou conversos. Mesmo que muitos deles tenham mudado voluntária e cinicamente para o cristianismo a fim de tirar proveito do sistema, os membros do clero em contato com as dinastias da Península Ibérica — desde a existência do reino visigodo, de 418, até sua queda em 711 com a conquista árabe, e depois com várias dinastias — queriam ser zelosos realizando conversões forçadas. Essas medidas foram condenadas por Roma, que acreditava que essas populações judaicas disfarçadas de católicas iriam perverter o cristianismo nascido da Revelação. Como reconheceu o historiador judeu inglês Cecil Roth: "Na aparência, eles eram cristãos: batizavam seus filhos na Igreja, mas, ao voltarem para casa, apressavam-se em remover os traços da cerimônia [...]. Por trás dessa impostura, eles continuavam sendo o que eram. Sua má-fé em relação aos dogmas da Igreja era notória e nem sempre disfarçada [...]. No que diz respeito à raça, à crença e à prática geral, eles continuaram sendo o que eram antes de sua conversão: judeus em tudo, exceto no nome, e cristãos em nada, exceto na forma [...]”3.
Essas práticas levaram à expulsão os judeus e muitos marranos da Espanha em 1492 por Isabel, a Católica (Decreto de Alhambra). Retornando às suas práticas religiosas tradicionais, os judeus se estabeleceram em muitos países europeus e mediterrâneos, especialmente no Império Otomano. Alguns deles passaram a ocupar cargos eminentemente importantes, o que lhes permitiu moldar as políticas de seus países anfitriões contra os países católicos. Cecil Roth listou os nomes de ex-marranos que desempenharam um papel decisivo nas relações políticas na Europa ou no velho continente. Esse é o caso de Joseph Nasi (1524-1579), que se tornou duque de Naxos e ocupou um alto cargo na corte da Sublime Porta, a ponto de poder contribuir para a eleição de um novo monarca na Moldávia, incentivar a revolta e a independência dos Países Baixos em 1579 (as Províncias Unidas tornaram-se o reduto do marranismo no século XV) contra a Espanha, ou forçar Veneza, após uma guerra perdida, a ceder a ilha de Chipre aos otomanos. Ainda de acordo com Cecil Roth, encontramos o mesmo fenômeno com Álvaro Mendes, duque de Mitilene (1521-1603), um grande diplomata a serviço do mundo otomano, que ajudou a forjar uma aliança histórica entre a Inglaterra de Elizabeth I e a Sublime Porta4 contra a Espanha. O sucesso de Mendes baseou-se nos laços familiares com a família marrana de Dunstan Ames, com o fato de ser fornecedor da corte real inglesa e também um agente financeiro em Londres5. Esses fatos são importantes, porque ilustram a influência e o impacto dos marranos na vida política europeia. No final do século XVI, os marranos também se estabeleceram na Holanda — tão numerosos que o país era chamado de “Jerusalém holandesa” —, que estava destinada a se tornar uma séria concorrente econômica e financeira da Inglaterra. No entanto, o mundo inglês gradualmente mudou a balança a seu favor para acomodar uma grande comunidade judaica ibérica e/ou marrana, que lançou as bases para o poder financeiro da cidade de Londres. Essa comunidade introduziu uma forma de messianismo no imperialismo inglês. Após a expulsão dos judeus da Inglaterra em 1290, eles retornaram gradualmente em pequenos grupos no final do século XV e início do século XVI. Embora ainda houvesse dificuldades entre a comunidade marrana e a população inglesa, os recém-chegados conseguiram criar raízes gradualmente, também devido à agitação provocada pela Reforma de Lutero, Calvino e Cranmer. Também é verdade que o terreno já havia sido preparado há muito tempo por contatos e intercâmbios entre intelectuais judeus, cabalistas ou não (Yohan Alemanno, Elias del Medigo etc.) e humanistas (Petrarca, Marsílio Ficino, Pico della Mirandola, Reuchlin, etc.); estes últimos, por ação capilar, incentivaram as elites religiosas e políticas da Europa a se moverem em direção ao naturalismo e ao nominalismo.
A reforma protestante levou a um rompimento com o papado, resultando em uma mudança radical na prática religiosa: o pastor se tornou um funcionário público da mesma forma que o rabino. A rejeição de toda transcendência (em especial a rejeição do princípio de que o sacerdote, sendo superior ao anjo, poderia perdoar os pecados como Deus), a abolição do culto mariano, o desaparecimento dos mosteiros e a abolição da hierarquia eclesiástica levaram o protestantismo a adotar formas semelhantes ao judaísmo. Além do impulso naturalista do protestantismo, o impacto da Reforma também teve consequências econômicas e psicológicas. O ideal de prazeres terrenos, que prevaleceu sobre o conceito católico de que os bens mundanos não eram o alfa e o ômega das buscas celestiais, levou a uma mudança radical na forma como o dinheiro era usado. Como Jacques Attali nos lembra: “Neste mundo brutal governado por relações de poder, o dinheiro estava gradualmente emergindo como uma forma superior de organizar as relações humanas, permitindo que todos os conflitos, inclusive os religiosos, fossem resolvidos sem violência. Os autores do Talmud, cuja maioria era de comerciantes, eram frequentemente especialistas em economia [...]. Mas a riqueza não é uma recompensa: é um fardo. Os ricos não precisam se desculpar por serem ricos; eles apenas precisam assumir uma responsabilidade maior pelo gerenciamento do mundo[...]”6. Essa é a mentalidade que caracteriza perfeitamente o “Grupo Milner” descrito no livro de Carroll Quigley. E Jacques Attali acrescenta: “Em seguida, os reformadores propuseram uma grande revisão da ética econômica. O dinheiro não era mais sujo; era permitido colocá-lo para trabalhar, e Calvino autorizou os pastores a praticar empréstimos a juros por causa do ‘lazer piedoso’ que ele proporcionava aos ministros da religião: exatamente o que os rabinos vinham dizendo há quinze séculos! Foi uma mudança radical para o cristianismo: além dos primeiros banqueiros católicos, mais ou menos disfarçados de comerciantes, os agiotas judeus agora enfrentavam concorrência aberta e direta: a dos protestantes e, em breve, não apenas dos pastores”7.
Essa mudança de atitude levou a uma aproximação entre as mentalidades judaica e protestante, lançando as bases para uma política comum, mesmo que às vezes surgissem rivalidades ferozes entre as duas comunidades como resultado da ganância. Esse conluio ficou particularmente evidente com a adoção do protestantismo pelos ingleses após o reinado de Henrique VIII (1491-1547)8. Os séculos XVI e XVII viram uma sucessão de dinastias inglesas católicas e protestantes em um cenário de guerras civis e expurgos sangrentos. Durante esse longo período, embora a pequena comunidade marrana inglesa tenha tido seus altos e baixos, ela gradualmente conseguiu se estabelecer no cenário político e econômico inglês a ponto de se tornar indispensável. A primeira vitória marrana para a Coroa inglesa veio na pessoa de Hector Nuňes. Nuňes, que estava envolvido em atividades comerciais com a Espanha, tinha a confiança de dois ministros de Elizabeth I (filha de Henrique VIII): Burleigh e Walsingham. Por causa de suas atividades, Hector Nuňes tinha muitos agentes comerciais na Península Ibérica que também eram espiões. Com a ajuda desses agentes e da rápida disseminação de informações, Nuňes, alertado para o fato de que a Invencível Armada de Filipe II da Espanha estava ancorada em Lisboa e se preparava para cruzar o Canal da Mancha, conseguiu avisar os governantes ingleses sobre a ameaça que estava prestes a se abater sobre o jovem e frágil reino protestante9. Esse anúncio permitiu que a Coroa Britânica se organizasse a tempo de evitar o golpe10. Embora uma tempestade tenha contribuído para a derrota espanhola, a vitória inglesa sobre a Armada em 1588 deveu-se muito aos marranos11. O mesmo conluio pode ser visto com a chegada dos árabes à Espanha em 711. Conforme escreve Jacques Attali :
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