Nota prévia da tradução: Este é um capítulo da obra “La gnose universelle”, do professor francês Étienne Couvert (1927-2024). Famoso por seus escritos sobre gnosticismo, publicados inicialmente em um jornal da “Sociedade Augustin Barruel”, seus escritos acabaram por se tornar uma série de livros que discorrem sobre a infiltração e o desenvolvimento da Revolução no cristianismo. Neste capítulo, o autor analisa a profunda infiltração do gnosticismo no pensamento e na cultura russa a partir do século XVIII, que foi facilitada pela anterior influência do protestantismo sobre esse império.
Os dados históricos
O povo russo foi convertido à versão grega oriental do cristianismo, mas a recebeu em uma liturgia eslava e em uma escrita cirílica (kirilliza) que eram totalmente desconhecidas no resto do mundo cristão. Esse uso de um idioma específico foi um obstáculo essencial para a penetração da cultura cristã ocidental na Rússia. Ele desempenhou um papel semelhante ao do árabe na expansão do islã no Mediterrâneo. No entanto, o obstáculo representado pelo eslavo não era tão radical quanto o representado pelo árabe, porque a religião cristã permanecia fundamentalmente a mesma em ambos os lados.
Também é importante observar a catástrofe que foi, para os povos da Rússia, a invasão mongol e a destruição dos centros urbanos que provocou, ao longo de dois séculos, uma emigração para as florestas do norte e um retorno à uma vida semisselvagem.
O clero ortodoxo conservou por muito tempo, ao longo da Idade Média, o uso do grego. Podemos constatar, nos séculos XI e XII, prelados russos, como Cirilo de Tourov ou o metropolita de Kiev, Clemente, sustentarem polêmicas com grande ajuda de textos gregos sobre questões de exegese bíblica ou de ciências especulativas. Mas após o cisma grego, e sobretudo após a queda do Império Bizantino, o uso do grego se perdeu no clero russo. E como ele ignorava o latim, encontrou-se completamente isolado do resto da Cristandade. Com efeito, o latim era o veículo da cultura e das ciências em todo o Ocidente: ele era a fonte de todo o ensinamento cristão. Enquanto que na Europa a Igreja latina contribuía na difusão de uma cultura bastante notável por seus monastérios, universidades e ordens religiosas, na Rússia o clero, que estava reduzido à liturgia eslava, se desinteressa pelo ensino. Ele passou a dar destaque à celebração litúrgica com um ritualismo rigoroso e formalista. Ele negligenciava o dogma e a moral e, ao fazer isso, perdeu a profunda influência que tinha sobre as almas. O povo foi privado da instrução religiosa. Aqueles que sabiam ler o eslavo contentavam-se com o “Tchétia-Munéia”, o martirológio dos Santos. Para os demais, a religião popular ficou marcada pela ignorância, pela superstição e pela magia: uma literatura popular, impregnada de sobrenatural frequentemente extraído dos apócrifos da Bíblia ou de livros apocalípticos cujas interpretações extravagantes não podiam senão confundir ou aterrorizar as almas.
Enquanto que se desenvolviam no Ocidente latino uma filosofia, uma teologia e ciências religiosas extraordinárias que foram designadas pelo nome de “escolástica”, a Igreja russa manteve-se fora dessa corrente de pensamento cristão. O clero mostrou apenas desdém pelos problemas doutrinais, definições e deduções lógicas, aos quais eles davam o nome de “racionalismo latino”. Assim, os russos se condenaram à estagnação intelectual e moral. Conforme escreveu Nikolai Berdiaev (1874-1948) em seu artigo “A ideia religiosa russa” (1923), “não é possível formar uma ideia de o que é a fé ortodoxa russa guiando-se pela teologia oficial. A fé ortodoxa russa não conheceu doutrina teológica obrigatória e constituída em sistema, e praticamente não teve escolástica. O racionalismo teológico é o que menos importa à consciência religiosa russa. A ideia religiosa russa supõe que o mistério da vida divina não pode ser expresso em uma concepção racional”.
Ao rejeitar a escolástica e ao recusar o uso natural da razão nos estudos religiosos, a Igreja russa tornou-se incapaz de resistir às influências ocidentais que ali se penetraram a partir do século XVII. É verdade que nessa época a Universidade de Kiev começou a ensinar o latim. Infelizmente, esse foi o início de uma verdadeira subversão antirreligiosa.
Quando Pedro, o Grande (1672-1725) começou a abrir a Rússia para o Ocidente, foi o protestantismo quem invadiu seu vasto império. O próprio Pedro não havia recebido nenhum treinamento religioso sólido ou educação moral. Em uma carta aos seus superiores, um padre jesuíta, o Pe. Milan, disse: “A menos que haja um milagre de primeira ordem, não há esperança de que o czar se transforme e se entenda com o Vaticano. Obstáculos muito grandes opõem-se a isso. Seria preciso submeter-se à autoridade do Papa e aos rigores da moral, renunciando aos caprichos e abusos do poder”. Com efeito, ele foi um príncipe excêntrico e violento, caprichoso e mimado, de uma inteligência viva, mas sem rigor e nem firmeza. Ademais, quando ele conheceu um homem superiormente dotado e muito persuasivo, ficou totalmente submisso a ele. Trata-se de Teófanes Prokopovitch (1681-1736). Antigo aluno do colégio grego de Santo Atanásio, fundado em Roma pelo Papa Gregório XIII, Teófanes, de volta à Rússia, abjurou a fé católica e deu lugar a uma admiração ingênua pela filosofia de Francis Bacon e René Descartes. Dessas filosofias ele extraiu teorias inteiramente protestantes em matéria de dogma e de vida social e religiosa. Ele ensinou ao czar Pedro a superioridade da moral laica sobre o ensinamento da Igreja e a concepção totalmente protestante de um Estado que controla a vida espiritual de um país. Pedro inclinou-se ao luteranismo, frequentou templos protestantes, protegeu os quakers e os estrangeiros, com a condição de que eles pertencessem à Confissão de Augsburgo. Um de seus primeiros favorecidos foi um ardente calvinista, o general François Lefort (1656-1699). Todos os estrangeiros que ele atraiu para a Rússia eram protestantes.
Sob o reino da imperatriz Ana (1693-1740), ou seja, sob a tirania de seu favorecido, Ernst von Biron (1690-1772), os protestantes foram os senhores absolutos do Império. Nessa época, disse Mons. Filareto, “a polícia, os colégios (ou seja, os ministérios), a Academia de ciências, o exército e a marinha estavam sob o poder dos protestantes”. Prokopovitch era submisso a Biron: ele depunha, aprisionava e maltratava os bispos russos insuficientemente dóceis. O Sínodo criado pelo czar Pedro nomeava para o episcopado sacerdotes partidários da reforma protestante. São esses bispos que, no século XVIII, acolherão de braços abertos as lojas maçônicas e o ensinamento dos “philosophes” franceses.
O que se chamou na Rússia de partido alemão era na verdade o partido protestante, e ele foi todo-poderoso durante dois séculos.
Os Romanov abriram a Rússia ao mundo ocidental e ao materialismo das cidades europeias. Eles lançaram a moda dos enciclopedistas franceses e da filosofia alemã. “Quando a Rússia se abriu às influências de fora, escreve Henri Massis, foi para beber copiosamente dos erros de uma Europa já corrompida e que em seu núcleo não tinha mais nada a guardar”. Desde o “Contrato Social” e das antinomias de Kant, até ao materialismo histórico de Karl Marx, os russos acolheram com sombrio ardor todos os sistemas mais perigosos e mais destruidores da fé cristã. Dois séculos bastaram para entregar o país ao inferno bolchevique.
As fontes da filosofia russa
A maçonaria foi fundada em Londres em 1717. Nos vinte anos que se seguiram, ela se espalhou por toda a Europa pela ação perseverante do governo inglês. Ela logo foi introduzida na Rússia pelos ingleses protestantes. Sob o impulso de três homens enérgicos — Nikolay Novikov (1744–1818), Johann Georg Schwarz (1751-1784) e o príncipe Nikolai Trubetskoy (1745-1806) — ela se difundiu por toda a elite culta, de modo que todos funcionários políticos e religiosos do governo czarista eram afiliados às lojas. Estas se multiplicaram ao longo do século XVIII em todas as principais cidades da Rússia, especialmente em Moscou e São Petesburgo.
Novikov funda então a primeira grande editora na Rússia e, por meio dela, difunde toda a literatura iluminista do Ocidente. Ele publica, em 1775, o livro de Claude de Saint-Martin: “Dos erros e da Verdade”, traduzido para o russo. Ele também funda a “Sociedade benevolente”, círculo literário por onde passaram quase todos os escritores e homens de Estado destinados a deixar sua marca sob o imperador Alexandre I. Karamzin e Kiréevski fazem parte dele. Esses jovens maçons traduzem e difundem nas escolas as obras da filosofia iluminista. O grande duque Paulo, futuro imperador Paulo I (1754-1801), é iniciado nos mistérios de Emanuel Swedenborg da maçonaria sueca. Há um retrato dele onde ele leva as insígnias. Sua esposa, a futura imperatriz Maria Feodorovna, encontrou Saint-Martin no seu principado prussiano de Montbeliard. Johann Schwarz, um professor alemão importado, fundou o ramo russo da ordem Rosacruz para difundir o conhecimento filosófico e a perfeição moral, e a fim de “se tornar sem pecado como Adão antes da queda”. O seu sucessor, Ivan Lopukhina (1756-1816), que foi padrinho de Ivan Kiréevski (1806-1856), desenvolveu o pensamento gnóstico e iluminista na sua obra “Algumas características da Igreja interior”, republicada em francês em 1800. Esta obra contém os temas bem conhecidos da queda de Adão, criado andrógino e exilado do mundo da luz, da regeneração final, da Igreja interior, da qual a Igreja estabelecida é apenas a figura exotérica, e da difusão do monaquismo hesicasta (do grego ησυχια = tranquilidade), a forma grega do Quietismo1.
Foi Lopukhina quem mandou publicar Paracelso, Macário do Egito, Molinos, Claude de Saint-Martin e Gregório Palamas, sem ordem especial, e introduziu alguns dos Padres gregos nas suas coleções maçônicas.
A imperatriz Catarina II (1729-1796), inicialmente favorável a todo o movimento, começou a assustar-se com o início da Revolução Francesa. Fechou as lojas da
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