Monsenhor Gaume para brasileiros
A justa colocação da “questão dos clássicos” do século 19 e sua correspondência hoje na educação católica
“O duelo hoje é entre o paganismo e o catolicismo.”
Mons. Jean-Joseph Gaume, La Révolution, tomo VIII.
ㅤ
1. Prelúdio
Peço a licença e a paciência do leitor para expressar minha opinião aqui neste espaço, pois não conviria eu criar toda uma estrutura exclusivamente para exprimir algumas poucas observações pessoais (a mera escolha dos textos para traduzir já representa em parte o que gostaria de dizer), de modo que usarei esta quarta-feira (e não a sexta, como de costume) para tratar de um assunto ao qual me parece ter faltado alguma justiça pelos lados que o discutem.
O assunto aqui é a dita “questão dos clássicos”. Trata-se de uma disputa acontecida e resolvida na França do século 19. No meio católico francês essa disputa explodiu em 1850, no contexto da aprovação da Lei Falloux, que diferenciava a educação pública, administrada por comunas, departamentos ou pelo Estado, do ensino privado, que recebeu maior autonomia. Além disso, a lei beneficiou o ensino católico nas escolas primárias, dentre outras coisas. Há historiadores que consideram a maior vitória católica da França no século 19.
De um lado dessa disputa estava o bispo católico, doutor em teologia e escritor Mons. Jean-Joseph Gaume (1802-1879), que supostamente (segundo seus adversários à época e hoje) defendia uma um sistema educacional com a totalidade de materiais católicos, sem qualquer presença de autores da Antiguidade pagã, sob o risco de escândalo para os alunos, caso houvesse esse contato. Do outro, aqueles que supostamente defendiam um estudo mais amplo, recolhendo o que há de bom em todos os autores e aplicando ao ensino. À época, o estudo primário era composto de quatro anos de latim e francês e depois mais quatro anos, sendo inserido a partir do quinto ano o grego e uma matéria que abrangia as ciências naturais: este era o terreno específico da disputa.
Dizer que a questão tratava-se de uma colocação ou não de autores clássicos na educação como um todo é uma colocação não inteiramente verdadeira da disputa, e ela é anacronicamente trazida para os dias de hoje (ao menos entre os católicos brasileiros), colocando-se termos que de fato não diziam respeito à disputa da época.
A colocação atual da dessa questão, em analogia à disputa francesa oitocentista, se dá nos seguintes termos:
- Posição 1: Na educação católica como um todo não se deve absolutamente estudar os clássicos da Antiguidade pagã (antes de Cristo) ou os autores seculares de hoje, sob risco de perda da fé católica por aqueles que o fizerem, especialmente na educação infantil e infanto-juvenil. Hoje a educação padece de forte naturalismo e é preciso um remédio tão forte como uma quimioterapia que contrabalanceie esse mal. Deve-se ser sobrenaturalista ao extremo e substituir toda referência ao natural e físico por uma referência de caráter teológico ou ao menos “teologizante”.
- Posição 2: Deve-se, na educação católica, estudar os clássicos da Antiguidade pagã ou os autores seculares de hoje conforme a conveniência educacional, especialmente onde não houver material que venha suprir essa lacuna: “examinai tudo e abraçai o que for bom; Omnia autem probate: quod bonum est tenete” (1Tes. 5, 22). Devemos educar nosso imaginário com o melhor que os grandes clássicos da humanidade tem a nos oferecer, independentemente de seu valor ou conteúdo moral, de modo que a acumulação desse material na nossa memória se transmutará em uma síntese superior no nosso intelecto alimentado em prol do bem católico do nosso homem completo.
Tendo em vista o contexto educacional atual, partidários da Posição 1 pareceriam desarrazoados, dado que, sed contra, as posições de Pio IX e papas seguintes resolveram em favor do estudo de autores da Antiguidade pagã. Nesse sentido, o Partidário da Posição 2 diria que desfruta do favor pontifício.
Até onde chegamos, o partidário da Posição 2 acredita estar resolvida a questão da educação católica atual, pois, segundo ele, essa visão desfruta do favor pontifício e da orientação prática do Apóstolo das nações, e assim diríamos que os “gaumistas” de hoje são desarrazoados e sofrem de angelismo. E, se julgássemos a questão pela má colocação do problema passado, tal como colocam inclusive os atuais partidários de Mons. Gaume, especialmente entre leitores aderentes de O verme roedor da sociedade, poderíamos dizer também que o próprio bispo francês fora desarrazoado nessa questão. Mas não foi o caso.
ㅤ
2. A justa colocação do problema
Nunca havia me preocupado em ler a fundo os escritos de Mons. Gaume, e desta querela eu mantinha certa distância, pois achava sinceramente desproporcional alguém tomar a aqui chamada “Posição 1”; e da “Posição 2” eu mantinha certa distância, por saber de onde vinha. Olhando de longe e por meio de opiniões mal fundamentadas dos dois lados1, parecia que o insigne bispo tinha se equivocado por algum motivo. Mas, repito, não me interessava a questão.
Mas eis que, no começo de 2023, por essas voltas da vida, acabei recebendo o encargo de ser um dos revisores da tradução do “Tratado do Espírito Santo”, publicado agora em 2024 pela Editora Santa Cruz. E quem traduz ou revisa uma obra acaba lendo-a várias vezes, tanto no original quanto no traduzido.
Ali foi possível tomar contato com a inteligência penetrante do bispo Gaume. Boa parte de sua obra (para não dizer toda ela) exala a preocupação pelas grandes pragas dos últimos quinhentos anos, a saber: Renascentismo, liberalismo, a nova organização social que desembocou na moderna visão de Estado, protestantismo, Revolução e paganismo. Embora não tenha chegado às últimas consequências delas todas, ele conseguiu com mais êxito que muitos autores mapear esses males. Apesar disso, não poderíamos esperar de monsenhor um linguajar técnico-científico de nicho, pois seu público era o fiel católico, não o acadêmico2. Sua preocupação parecia ser aquela que todo o clero deveria ter: a glória de Deus e a salvação das almas.
Um desses problemas mapeados, o Renascentismo, Gaume considerava como precursor do paganismo na educação, que é especificamente o tópico que nos interessa. Com efeito, ele tinha razão em temer o Renascimento em todos os seus reflexos três séculos depois. Diz o Padre Alfredo Sáenz sobre esse movimento:
Vimos que o Renascimento se caracterizou pela fascinação literária que a Antiguidade exerceu sobre aqueles homens, de onde a convicção de que os tipos incomparáveis do belo haviam sido concebidos pelos antigos, e que aos modernos só restava imitá-los, se quisessem realizar o ideal estético. Esta persuasão foi comum a todos os renascentistas, sem distinção. Mas o próprio daqueles que integravam o “segundo Renascimento” era que a idade moderna deveria repudiar a cosmovisão medieval, e passando por cima da Idade Média, totalmente bárbara e estéril, fazer ligação direta com a Antiguidade, brilhante e fecunda.”
O entusiasmo pela antiguidade estava correndo solto. À medida que a admiração pelos santos diminuía em favor dos heróis greco-romanos, alguns pais preferiam dar a seus filhos nomes de gregos ou romanos ilustres, como Agamenon, Ulisses, Aquiles, César, ou até mesmo substituir o nome que haviam recebido no batismo por outro nome antigo e eufônico. Alguns até optaram por mudar o sobrenome. Foi então que se introduziu o costume de traduzi-lo para o latim ou grego. Assim, de Giovanni passou-se a Jovianus ou Janus; de Pietro, Petreius. O próprio Ariosto, que tanto se divertia com essas coisas, teve de ver como meninos e meninas eram batizados com os nomes dos heróis e heroínas de suas obras.
O fanatismo por Cícero foi simplesmente demencial. Havia casos reais de loucura entre os “ciceronianos”, como é provado pela trágica história de um belga, Christopher Longolo, uma espécie de Quixote literário, que passou dez anos consecutivos lendo Cícero para não ser infectado por nenhum outro autor, e passou a se acreditar um cidadão da Roma antiga e a compor, como se realmente tivesse que recitá-los no Senado, pomposos discursos para se defender de acusações, em grande parte imaginárias, ou nascidas de mania persecutória.... Como ele, havia vários “ciceronianos” que proibiam qualquer expressão cuja origem não pudesse ser documentada nas fontes do grande orador latino.3
Por isso só já diríamos que foi algo gravíssimo. Esse passo para trás foi em direção à apostasia: “porque virá tempo em que (muitos) não suportarão a sã doutrina, mas acumularão mestres em volta de si, ao sabor das suas paixões, (levados) pelo prurido de ouvir. Afastarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas.” (2Tim. 4, 3).
Mas tal passo não poderia ser dado sem dano. O homem que havia recebido os sacramentos da plenitude dos tempos e vivido em uma sociedade teocêntrica e plenamente desenvolvida espiritualmente não podia mais voltar ao estado anterior do paganismo, que por si só já era ruim. Desde Simão Mago, a Igreja e seus fiéis haviam vencido o gnosticismo nascido em Alexandria, as forças corruptoras do rabinismo e da Cabala e as invasões islâmicas; essa mesma sociedade também teve seus fiéis culminado em santidade e saber teológico na flor da Idade Média. Tudo isso pareceu não bastar. O homem do fim do medievo e começo do Renascimento (séculos 15 e 16) acreditou ser preciso voltar a um estado anterior. Era preciso buscar um novo modelo na Antiguidade pré-cristã.
Os homens estavam se tornando “mundanos”. Como a antiguidade clássica se tornou não apenas um modelo cultural, mas também um ideal de vida, o ceticismo começou a se infiltrar. Embora continuassem a distinguir o bem do mal, eles reconheciam cada vez menos o significado teológico do pecado e, portanto, a necessidade de arrependimento. A redenção perdeu todo o significado, assim como a ideia da vida após a morte, a menos que fosse considerada de forma puramente poética. Talvez essa tenha sido a principal peculiaridade da Renascença em comparação com a Idade Média: seu mundanismo, enobrecido pela poesia e pela arte. Alguns até gostavam de ostentar seu ateísmo, mas era um ateísmo pour la galerie, não nascido de convicção ou fundamentado especulativamente, mas apenas o produto de sua preferência pelo homem da Antiguidade em detrimento do homem da Idade Média, tentando se aproximar dele em tudo.
A principal ideia que esses homens levantaram como bandeira de combate foi a do humanismo, que para eles nada mais era do que uma ética da nobreza humana. O humanismo, que era movido por uma forte tendência ao estudo e à ação, buscava exaltar a grandeza do gênio, o poder de seus criadores. O essencial para eles era o esforço do indivíduo para se desenvolver por meio de uma disciplina rigorosa e metódica, aprimorando todas as capacidades naturais para não perder nada daquilo que torna o ser humano grande e magnífico. “Lutar com esforço ininterrupto, diz Goethe em Fausto, em direção à forma mais elevada de existência”. Tal ética impunha o esforço constante, uma moralidade individual e coletiva, um direito e uma economia, uma política, uma arte e uma literatura, tudo como fruto do esforço humano, sem qualquer recurso à ajuda da graça e com base em um retorno à cultura antiga. As gerações da Renascença italiana estavam convencidas de que haviam restabelecido com a Antiguidade um contato que consideravam ter sido interrompido desde o início da Idade Média, retomando o esforço do homem antigo para conhecer o mundo e a natureza humana, no qual se baseava a antiga educação do indivíduo e do cidadão. O homem da antiguidade era o verdadeiro homem, o homem como ele deveria ser. A Idade Média o havia desencaminhado. Portanto, era necessário “renascer”, retomar a cultura e o modo de vida da Grécia e de Roma. Referindo-se à Itália, Maquiavel disse: “Este país nasceu para trazer coisas mortas de volta à vida”.4
Desse desejo de volta ao homem velho surgiria uma nova síntese. Por um lado, a relativa inocência dos pagãos é irrecuperável depois de Cristo, pois homem recebera muito, de modo que por isso mesmo é muito mais cobrado; pelo outro, o homem ainda carregava algo (muito mais que nós hoje) de uma sociedade teocêntrica, de modo que uma visão de uma sociedade revolucionária e transformada era apenas uma especulação de seitas gnósticas. Por isso mesmo esse movimento renascentista era algo novo: o demônio da Antiguidade, que fora expulso na Cruz, voltou no Renascimento trazendo consigo sete demônios piores para punir esses maus desejos: “Quando o espírito imundo saiu de um homem, anda errando por lugares áridos, à busca de repouso, e não o encontra. Então diz: Voltarei para minha casa, donde saí. E, quando vem, a encontra desocupada, varrida e adornada. Então vai, e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele homem torna-se pior que o primeiro. Assim também acontecerá a esta geração perversa” (Mt. 12, 43-45).
Aqui estamos diante de uma revolução copernicana do espírito, como disse Marcel de Corte: “em vez de o espírito girar em torno das coisas, agora são as coisas que giram em torno do espírito, como planetas em torno do sol”5 . No ato do afastamento ou da recusa das concepções de “ser” e “realidade” que tinham os medievais, o próprio homem se transformou.
O Renascimento — para além dos esplendores artísticos que disfarçam o processo — inaugurou a era do individualismo. Desde Jacob Burkhardt, ninguém nega essa evidência. Não hesitamos, de nossa parte, em considerar que sua causa se encontra no cristianismo, mas não no cristianismo tomado como vetor sobrenatural que une as almas a Deus, nem na estrutura social da Igreja, nem em seus dogmas, sua liturgia, seus sacramentos, mas no cristianismo que foi desnaturalizado, secularizado, humanizado, privado de seu foco divino de gravitação. (…)
É conhecida a fórmula: o antropocentrismo substituiu o teocentrismo. O Deus que se fez homem é substituído implacavelmente pelo homem que se faz Deus, não pela mediação de Cristo e da Igreja no nível do sobrenatural e da eternidade, mas somente pelas forças de sua própria excelência no nível da sua única vida e do tempo. Tendo excedido sua condição de criatura, o homem quer converter-se em criador.6
Ele já não era mais um contemplativo, e sua política não tinha mais a mesma concepção de Bem Comum que seus antecessores. Agora era hora de desenvolver novas técnicas de navegação, comércio, plantio, imprensa e aperfeiçoar as ciências naturais não para melhor contemplar a mão do Criador na criação, mas para transformar seu meio mais perfeitamente e aproveitar melhor dos bens materiais e culturais que a vida presente tem a oferecer. Não poderia haver uma Revolução como a francesa sem essa transformação fundamental.
Assim, chegamos enfim ao velho homem piorado: o homem neopagão. Era uma nova atitude de espírito e uma prática diferente da religião sacrificial e litúrgica greco-romana, que em seu tempo ainda cumpria um certo papel na ordem social.
Diferente daqueles antigos a quem os renascentistas imitavam apenas esteticamente, o novo paganismo é materialmente uma mescla de esoterismos, movimentos anticatólicos e antifilosóficos que, em última instância, se reportam ao gnosticismo (como gênero) e à Cabala (como espécie): há na raiz desse neopaganismo uma vontade deliberada e revoltada contra o mundo tal como ele é posto; não bastava mais contemplá-lo ou sequer aceitá-lo: era preciso transformá-lo desde seus alicerces. A contemplação7 e a prudência8 foram absorvidas pela técnica transformadora do mundo material. Daí surgiu também uma nova concepção de República, que mais tarde veio a se tornar o Estado moderno, que, na época de Mons. Gaume, dava seus primeiros passos.
E a árvore do Renascimento (que na verdade é um Nascimento do neopaganismo) deu seus frutos mais tarde: chegaríamos ao Iluminismo e, logo em seguida, à Revolução francesa e à laicização da sociedade, que de laica não tem nada, mas de anticatólica e anticlerical tem tudo, assim como seus próceres. Em todo esse caldo não podemos esquecer do Protestantismo, que, em concomitância e simultaneidade com a Renascença e o Iluminismo, arrastou grande parte da Europa.
Com o perdão do resumo, aqui chegamos a Mons. Gaume, que lutou contra todas essas frentes.
Seria muito simplista colocarmos o assunto nos termos de um Mons. Gaume simpliciter contra qualquer autor clássico na educação dos jovens e dos seminaristas versus uma posição dita razoável de que se deveria convenientemente introduzir os clássicos da antiguidade aos estudantes. Trata-se de uma colocação falsa e simplista da querela. Quem toma contato com as obras deste valoroso cavaleiro da Ordem de São Silvestre não pode deixar de concluir que é IMPOSSÍVEL um homem tão sábio ter uma opinião tão simplista assim, ou seja, “sou contra os autores da Antiguidade clássica, pois qualquer contaminação com eles leva a uma perda da fé”9.
Pela evidente má intenção de alguns de seus adversários e a sinceridade de outros (inclusive sinceros católicos), ele teve de escrever um opúsculo de 50 páginas explicando sua posição (“La question des classiques ramenée a as plus simple expression”, 1852 [em tradução livre: “A questão dos clássicos resumida de maneira simples”]), que não é contradita por nenhuma obra sua.
2.1. A tese propriamente dita
Mons. Gaume, que de fato queria uma eliminação daquilo que era prejudicial às almas, defendia a seguinte tese nas seguintes proposições:
A tese é expressa nas duas proposições seguintes: 1º) não excluo os autores pagãos do ensino, mas não quero que eles ocupem um lugar de destaque; 2º) peço que os autores católicos sejam os clássicos exclusivos das crianças até o quarto ano, inclusive.
Acredito que esse período é necessário por muitas razões, incluindo as seguintes: 1º para aprender adequadamente a língua latina cristã, cujo conhecimento, tão útil em si mesmo, é indispensável para estudar a literatura antiga de forma proveitosa; 2º para evitar embaraçar o progresso da criança estudando duas línguas ao mesmo tempo; 3º nutrir mais fortemente do que nunca com o cristianismo nossas jovens gerações, que vêm de famílias em sua maioria não muito cristãs e estão destinadas a viver em uma sociedade que é ainda menos cristã; 4º e modificar seriamente o caráter demasiadamente profano ou, como diz o Conde de Maistre, demasiadamente cientificista de nossa educação pública, e assim evitar as calamidades previstas pelo ilustre filósofo.
(…) Após o quarto ano, os autores pagãos podem, ainda assumindo as reservas relativas ao expurgo e à explicação, ser admitidos simultaneamente com os autores cristãos. Esta é a minha opinião. Acredito que ela seja bem fundamentada; mas, por mais que eu a tenha defendido com veemência, não tenho a pretensão de impô-la a ninguém. É a minha maneira particular de formular o princípio aceito hoje por todos, ou seja, que há algo a ser feito.10
2.1.1. Objeções à tese
Sobre tal tese, segundo o bispo, levantaram-se três classes de objeções: literárias, históricas e religiosas. Sem pretender resumir o opúsculo todo, comentarei um pouco de cada uma.
- As objeções literárias diziam que o programa pretendido por Mons. Gaume matava o estudo do latim, pois, segundo os objetantes, o latim cristão era bárbaro ou simplista demais.
A esta objeção Gaume responde dizendo que, por mais que o sistema educacional francês da época submetesse os alunos a um programa de sete anos de estudos de latim e grego (compostos inteiramente e indiscriminadamente por autores pagãos, inclusive em suas manifestações mais grosseiras), mal existiam quinhentas pessoas no país inteiro lendo o latim por prazer e iniciativa própria. Ademais, pelo aspecto do simplismo, Gaume dizia que o programa escolar colocava os alunos desde o começo já em contato com as mais difíceis manifestações do latim pagão, que está em outro patamar de dificuldade, se comparado ao latim cristão. Ora, começar o ensino de um idioma por sua parte mais difícil e indecifrável é uma maneira de se certificar que a maior parte não aprenderá nada ou ao menos demorará muito para aprender. Por fim, segundo citação recolhida por Mons. Gaume, ele afirma que todo estudante de latim poderia comprovar:
Se os escritos sagrados carecem de um certo floreio literário, eles respeitam as leis da gramática, e a lógica do discurso é irrepreensível. Eles podem ser usados, com maior vantagem que os modelos mais perfeitos da antiguidade profana, para passar da construção à análise e da análise à construção.11
- As objeções históricas dizem que excluir o acesso dos autores pagãos até o 4º ano de ensino era inovar.
Aqui Mons. Gaume estabelece o ônus da prova aos seus objetantes, que, segundo ele, não conseguem estabelecer que isso seja uma inovação na Igreja. Ademais, diz ainda Mons. Gaume, o espírito em que se estudava os autores pagãos antes não era o mesmo com que se estudava em seus dias, no século XIX.
- As objeções religiosas são um pouco mais complexas, e dentre elas se diz que Mons. Gaume (1) exagerava a influência dos autores pagãos sobre as crianças; (2) que com bons professores se podia extrair o que há de cristão nos autores pagãos; (3) que era um perigo ele colocar a Bíblia na mão das crianças; (4) atacar o sistema educacional de então era um ataque ao clero, que era o responsável por esse sistema; (5) atacar o sistema de então era atacar uma tradição de 300 anos e, portanto, atacar a Igreja; (6) que essas ideias de reforma são o resultado final de um sistema filosófico que já foi condenado pela Santa Sé; (7) que Mons. Gaume fora temerário e (8) inoportuno.
Para responder a tantas objeções, o bispo reforça sua tese formulada e diz que é contra o estudo exclusivo e precoce dos autores pagãos, não sua abolição; quanto à segunda objeção, tratava-se de uma tese falsa, pois, segundo ele, a educação francesa era dada pelo clero e nem por isso se impediu a degenerescência a qual ele combatia, portanto a causa instrumental não pode extrair o que não há na formal; quanto à terceira, ele jamais defendeu senão a introdução paulatina de extratos escolhidos e preparados da Bíblia, jamais uma Bíblia inteira; como a segunda objeção, na quarta objeção também lamenta seus resultados, não as congregações; quanto a quinta, ele responde dizendo que a Igreja não tinha um programa oficial de estudos; à sexta diz que não há provas disso e as duas últimas objeções realmente não colhem.
ㅤ
3. Vitória de Mons. Gaume, derrota dos gaumistas
3.1. A vitória de Gaume
Após três anos da disputa, a qual tratamos muito resumidamente aqui12, o papa Pio IX intervém na disputa e publica, em 21 de março de 1853, a Encíclica Inter Multiplices, consagrando a tese de Mons. Gaume e terminando a questão:
… Em primeiro lugar, uma vez que é sabido e manifesto o quanto a boa educação do clero beneficia a prosperidade da Igreja, bem como do Estado, não deixai, de comum acordo, de exercer seu cuidado e solicitude em um assunto de tal importância. Continue, como fazeis, a não deixar de tentar todos os meios possíveis, para que os jovens clérigos nos seminários possam ser formados em tempo hábil em todas as virtudes, na piedade e no espírito eclesiástico; para que possam crescer em humildade, sem a qual não podem agradar a Deus, e também nas letras humanas e nas disciplinas mais severas, especialmente as sagradas; e, longe de todo perigo de erro, sejam tão diligentemente instruídos que possam não apenas aprender a verdadeira elegância da fala, escrita e eloquência, tanto das mais sábias obras dos santos Padres, quanto dos mais distintos escritores pagãos purificados de toda imundície, mas possam também alcançar principalmente a perfeita e sólida ciência da teologia, da história eclesiástica e dos cânones sagrados, fornecidos pelos autores aprovados por esta Sé Apostólica.13 (grifos nossos)
Ora, a tese em destaque é EXATAMENTE aquela formulada por Mons. Gaume, um ano antes, em seu “La question des classiques ramenée a as plus simple expression”.
E para não termos dúvidas de que Pio IX aderiu à tese de Mons. Gaume, vejamos esta carta enviada pelo papa ao bispo, anos depois, em 22 de abril de 1874, reproduzida por Mons. Gaume em seu livro “Pie IX et les études classiques” (“Pio IX e os estudos clássicos”):
… Igualmente, não vos abaleis com as oposições e críticas maliciosas de alguns, visto que, como dizeis, o objetivo único de vossos escritos foi defender, na questão dos estudos, as regras que sabeis ser aquelas por nós aprovadas, a saber: fazer com que a juventude estude, juntamente com as obras clássicas dos antigos pagãos, expurgadas de toda imundície, os mais belos escritos dos autores cristãos.14
A posição de Pio IX não podia senão estar de acordo com o bom senso e a antiguidade católica. Vejamos o que dizem alguns eminentes católicos.
São Basílio Magno, “Carta aos Jovens sobre a Literatura Pagã”:
Sabemos que Moisés, cuja sabedoria bem conhecemos, dedicou-se às ciências egípcias (Atos 7, 22) antes de se dedicar à contemplação das coisas do alto. Em séculos posteriores, o profeta Daniel instruiu-se na sabedoria dos caldeus da Babilônia (Dan. 1, 4), antes de se aplicar às ciências sagradas. Então, podemos concluir que as ciências profanas não são inúteis. Agora é preciso aprender o que delas se pode extrair. Comecemos pelos poetas, cujos discursos são variados. Não devemos nos apegar a tudo aquilo que dizem, mas recolher as ações e palavras dos grandes homens dos quais nos falaram: iremos admirá-los e tentaremos imitá-los. Mas quando nos forem apresentadas personagens infames, taparemos os ouvidos para nos proteger de semelhantes exemplos, como fez Ulisses para evitar o canto das sereias (Odisseia, l. 12. v. 173). Pois o hábito de se entreter com palavras contrárias à virtude conduz diretamente à prática do vício. Portanto, devemos velar por nossas almas, de modo que as máximas perversas não se insinuem ao coração através das palavras, como se fossem um amargo veneno adocicado pelo mel. Assim, evitemos os poetas que espalham pelas bocas de suas personagens as injúrias e os sarcasmos, que descrevem a lascívia e a embriaguez, que fazem parecer que a felicidade consiste em mesas suntuosas e cantos efeminados. Ainda menos aqueles que poetizam a pluralidade de deuses com suas disputas indecentes, onde irmão ataca irmão, o pai guerreia implacavelmente com seus filhos, os deuses são adúlteros e se entregam às paixões e aos seus negócios infames, sobretudo este Júpiter, anunciado como uma divindade suprema, mas se o fosse envergonharia até mesmo os animais. Que sejam todos abandonados aos historiadores, que saberão o que fazer deles.
O mesmo se pode dizer sobre os proseadores que só buscam corromper o espírito daqueles que os leem. Não nos serviremos dos oradores que apenas usam da sua arte para a enganação. Pois os cristãos escolhem a via reta e verdadeira que está contida nos Evangelhos, e jamais devem consentir com a mentira. Devemos estudar os autores profanos que louvem a virtude e condenam o vício. Das flores, nos contentaremos em apreciar suas cores e sentir seu perfume; no entanto, as abelhas delas extraem a substância para produzir o mel.
Realiza também o mesmo itinerário Santo Agostinho em seu “A Doutrina Cristã”, onde primeiro explica que a Verdade é propriedade de Deus, onde quer que ela seja encontrada (livro 2, cap. 19)15:
Que seja certo ou não o que Varrão relatou, nós não estamos constrangidos por causa da superstição a renunciar à música, se dela podemos tirar proveito para a compreensão das Escrituras santas. Nem, por outro lado, estamos constrangidos a adotar as vãs e frívolas canções teatrais, quando ao tratarmos de cítaras e de outros instrumentos musicais, eles nos servem para o conhecimento das coisas espirituais. Se assim não fosse, sequer deveríamos aprender as letras, já que pretendem ser Mercúrio o seu inventor. Ou bem, sob o pretexto de que os pagãos dedicaram templos à Justiça e à Virtude, e preferiram adorar nas pedras o que é preciso trazer no coração, deveríamos, por isso, renunciar à Justiça e à Virtude. Bem ao contrário, todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor. Essa verdade, uma vez conhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersticiosas que se encontram até nos Livros sagrados. O bom cristão deve lamentar e evitar os homens “que tendo conhecido a Deus não o honraram como Deus, nem lhe renderam graças. Pelo contrário, perderam-se em vãos arrazoados e seu coração insensato fixou-se nas trevas. Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis” (Rom. 1, 21-23).
E depois, nos capítulos seguintes, dedica-se a fazer justamente o trabalho de expurgação, onde distingue duas categorias de ciência entre os pagãos (livro 2, cap. 20): “Uma categoria é das coisas que foram instituídas pelos homens. Outra é das coisas que eles consideram já terem sido instituídas ou que o tenham sido por Deus”, e dentre as humanas ele distingue primeiro as superstições pagãs16, e depois as instituições e artes humanas, “isto é, as que não estão estabelecidas em pacto com os demônios, mas com os homens”. E arrebata (livro 2, cap. 41):
Os que são chamados filósofos, especialmente os platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e compatíveis com a nossa fé, é preciso não somente não serem eles temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso, como alguém que retoma seus bens a possuidores injustos. De fato, verificamos que os egípcios não apenas possuíam ídolos e impunham pesados cargos a que o povo hebreu devia abominar e fugir, mas tinham também vasos e ornamentos de ouro e prata, assim como quantidade de vestes. Ora, o povo hebreu, ao deixar o Egito, apropriou-se, sem alarde, dessas riquezas (Ex. 3, 22), na intenção de dar a elas melhor emprego. E não tratou de fazê-lo por própria autoridade, mas sob a ordem de Deus (Ex. 12, 35-36). E os egípcios lhe passaram sem contestação esses bens, dos quais faziam mau uso. Ora, dá-se o mesmo em relação a todas as doutrinas pagãs. Elas possuem, por certo, ficções mentirosas e supersticiosas, pesada carga de trabalhos supérfluos, que cada um de nós, sob a conduta de Cristo, ao deixar a sociedade dos pagãos, deve rejeitar e evitar com horror. Mas eles possuem, igualmente, artes liberais, bastante apropriadas ao uso da verdade e ainda alguns preceitos morais muito úteis. E quanto ao culto do único Deus, encontramos nos pagãos algumas coisas verdadeiras, que são como o ouro e a prata deles. Não foram os pagãos que os fabricaram, mas os extraíram, por assim dizer, de certas minas fornecidas pela Providência divina, as quais se espalham por toda parte e das quais usaram, por vezes, a serviço do demônio. Quando, porém, alguém se separa, pela inteligência, dessa miserável sociedade pagã, tendo-se tornado cristão, deve aproveitar-se dessas verdades, em justo uso, para a pregação do evangelho. Quanto às vestes dos egípcios, isto é, às formas tradicionais estabelecidas pelos homens, mas adaptadas às necessidades de uma sociedade humana, da qual não podemos ser privados nesta vida, será permitido ao cristão tomá-las e guardá-las a fim de convertê-las em uso comum.
Poderíamos citar outros eminentes católicos ao longo dos tempos que empreenderam a mesma atitude, que veio a ser coroada mais tarde pelo magistério pontifício, mas creio que a posição está suficientemente estabelecida pelo Papa em primeiro lugar, que aderiu à tese gaumista; e em segundo lugar pelos padres da Igreja, que não pregam uma abstenção indiscriminada das obras dos autores pagãos, mas sim daquilo que há de mal para as nossas almas.
3.2 A derrota dos gaumistas de hoje
Assim como os objetantes (tanto alguns daquela época quanto alguns de hoje), que inventam um Mons. Gaume que quer eliminar indistintamente os autores da antiguidade clássica, assim seus defensores (ao menos os atuais) também tomaram para si essa mesma ficção como realidade e acreditam em uma educação quimioterápica e exclusiva de autores católicos.
Mas hoje vivemos no mundo em que, além de Inter Multiplices, recebemos do Magistério da Igreja aquela que poderíamos chamar de “Carta Magna da Educação”: Divini Illius Magistri (1929), do Papa Pio XI. Sobre a questão que aqui discutimos, a Encíclica não faz senão reforçar a mesma posição expressa no século anterior por Pio IX (a qual Mons. Gaume compartilha com os Santos Padres), quando diz:
…nunca o estudo da língua pátria e das letras clássicas redundará em detrimento da santidade dos costumes; pois que o professor cristão seguirá o exemplo das abelhas, que das flores colhem a parte mais pura, deixando o resto, como ensina S. Basílio no seu discurso aos jovens acerca da leitura dos clássicos. E esta necessária cautela, sugerida também pelo pagão Quintiliano, não impede de modo nenhum que o mestre cristão acolha e aproveite quanto de verdadeiramente bom produzem os nossos tempos na disciplina e nos métodos, lembrado do que diz o Apóstolo: “Examinai tudo: conservai o que é bom”.17
Portanto vão contra o Magistério aqueles católicos que defendem uma educação cuja tese é aquela da “Posição 1”, praticando assim o excesso do angelismo, que é dar relevo ao sobrenatural em detrimento do natural.
Se, por um lado, a “Posição 2”, como dito na nota 9, carrega algo de demoníaco, pelo outro esta posição pseudo-gaumista carrega uma carga de embotamento intelectual, na medida em que falta aqui aquela qualidade da justa medida requerida no exercício das virtudes intelectuais e práticas18.
ㅤ
4. Linha do tempo não exaustiva das intervenções de Mons. Gaume que tocam à sua posição na “questão dos clássicos”
A luta contra o paganismo (não só na educação, mas em toda a sociedade), percorreu toda a obra de Mons. Gaume. Dessa vasta obra, citaremos apenas algumas, para que o leitor entenda que não era uma preocupação passageira, uma distração ou um destempero do prelado. Era uma das lutas de sua vida. Nosso limitado espaço nos impede de comentar uma a uma.
1835 - Du catholicisme dans l’éducation (Do catolicismo na educação) - Quando cuidava do seminário menor de Nevers, viu a educação dos seminaristas ser saturada e degenerada por autores pagãos. Experiência marcante que o levou a escrever este livro e, talvez, empreender toda a sua luta até o fim da vida.
1851 - Le ver rongeur des sociétés modernes (O verme roedor das sociedades modernas, com tradução em português) - Sua “obra-bomba” que explodiu a controvérsia.
1852 - Cartas a Mons. Dupanloup, Bispo de Orleans, sobre o paganismo na educação.
1852 - La question des classiques ramenée à sa plus simple expression (A questão dos clássicos resumida de maneira simples) - Opúsculo de pouco mais de cinquenta páginas onde ele explana sua posição exposta em “O verme roedor” e responde a objeções e distorções de sua tese.
1856 a 1859 - La Révolution, recherches historiques sur l’origine et la propagation du mal en Europe, depuis la Renaissance jusqu’à nos jours (A Revolução, pesquisas históricas sobre a origem e a propagação do mal na Europa, desde o Renascimento até os dias de hoje).
Esta obra é dividida em grandes temas e, poderíamos dizer, é o grande esforço que Monsenhor Gaume empreendeu para fundamentar toda sua defesa pelas almas católicas, na medida em que diagnosticava o mal que lhes atacava. A divisão de temas é a seguinte:
A Revolução Francesa (tomos 1, 2, 3 e 4)
O voltarianismo (tomo 5)
O cesarismo (tomo 6)
O protestantismo (tomo 7)
O racionalismo (tomo 8)
O Renascimento (tomos 9, 10, 11 e 12)
1864 - Tratado do Espírito Santo - O Tomo I é central para entender a visão de Monsenhor sobre o paganismo na sociedade. Ali, a “Cidade do mal” é exposta em toda sua feiura. Se não for essa sua obra magna, ao menos merece menção honrosa.
1874 - Pie IX et les études classiques (Pio IX e os estudos clássicos, editado recentemente em português, vide hyperlink. Adendo: não conheço a editora e nem a tradução, mas pressuponho um bom trabalho, salvo melhor juízo).
1877 - Mort au cléricalisme ou résurrection du sacrifice humain (Morte ao clericalismo ou ressureição do sacrifício humano) - Abordagem a qual considero complementar ao Tomo I do Tratado do Espírito Santo. Aqui ele vai ainda além e analisa o paganismo nas sociedades pagãs em suas últimas consequências.
Mons. Gaume também empreendeu a edição de 30 volumes de material para o estudo do latim: trechos escolhidos da Bíblia, atas dos mártires, Santos Padres, etc., que é justamente a realização prática de sua tese.
ㅤ
5. Conclusão
Todo esse assunto mereceria em um livro inteiro. Desde o século 19, poucos anos depois da própria “questão dos clássicos”, já existiam obras sobre o assunto. E depois, no século 20, elas continuaram a existir. Aqui no Brasil, o professor e escritor Carlos Nougué declarou sua intenção de publicar uma, a qual aguardamos.
Neste texto, quis apenas esclarecer a tese de Mons. Gaume e rebatê-la tanto contra certos objetantes quanto contra seus defensores, que corrompem-na. Reitero: Mons. Gaume defendeu que, (1) no estudo do latim e do grego, fosse adiada a introdução de autores pagãos (mesmo expurgados) em vista do seu altíssimo grau de dificuldade: (2) que quando fossem introduzidos, após o quinto ano, que fosse feito expurgando tudo aquilo que poderia causar dano às almas dos jovens.
Basicamente, o ensino da época consistia nos quatro primeiros anos em somente francês e latim como matérias, e por meio delas se tocava em todas as disciplinas de humanidades que naqueles anos se podia falar. Somente no quarto ano era inserido aos poucos o grego, e no quinto as matérias de ciências naturais, ainda mantendo o francês e o latim na grade, de modo que ao final de oito anos as matérias de humanidades totalizavam 80% do percurso total, acabando por ser o filtro pelo qual as crianças aprendiam a ver o mundo. Pense no estrago que é escandalizar uma criança justamente naquela ferramenta que ela vai enxergar o mundo. Era isso que Mons. Gaume estava combatendo.
Alguém pode se acreditar no direito de discutir as duas posições colocadas no início do texto, a despeito do Magistério, entretanto falta com a justiça atribuir a “Posição 1” como uma versão atualizada da tese de Mons. Gaume. Era um outro contexto e sua tese não era aquela. Não nego que a forma de se expressar de Mons. Gaume às vezes deponha contra si mesmo, mas na maior parte das vezes o que vemos é um homem sábio.
Fim
(Assinado: Leonildo Trombela Júnior)
Há defensores de ambos os lados com influências nas fileiras da educação católica.
Que conste que em sua troca de cartas com Mons. Dupanloup (seu oponente na disputa), Mons. Gaume mostrou ser capaz de elevar consideravelmente seu linguajar.
Alfredo Sáenz, La nave y las tempestades. “El Renacimiento y el peligro de mundanización de la Iglesia”, tomo V, Buenos Aires, 2004, Gladius, pp. 117-119.
Alfredo Sáenz, op. cit., pp. 122-123.
Marcel de Corte, L’intelligence en péril de mort. Ed. L’Homme Nouveau, 2017, p. 37.
Marcel de Corte, De la sociedade a la termitera pasando por la “disociedad”. Revista Verbo nº 131-132, 1975, pp. 108-109.
Ou seja, suas virtudes intelectuais especulativas: sabedoria, ciência e inteligência.
Ou seja, suas virtudes intelectuais práticas e suas virtudes morais, resumidas na prudência, que é a reta razão no agir.
Ainda que fosse o caso, não seria de todo condenável o zelo excessivo pelos humildes, tal como o seria um laissez-faire que deixa qualquer um se contaminar com qualquer coisa. Há diferença entre examinar tudo e se contaminar com tudo, e há quem acredite que, ao se contaminar com todos os venenos, a inteligência fará uma síntese superior de toda essa mistura e alquimicamente transmutará o mal em bem. O exame é católico, a contaminação é demoníaca. Assim, poderíamos dizer que a Posição 2 é uma falsificação demoníaca e de modo algum é aquela do Magistério. Primeiro porque nesse caso não há garantias de que você não morra durante o processo de assimilação indiscriminada, ou seja, quando você ainda é veneno; e, segundo, que o mais não sai do menos: da soma do estudo e assimilação de pensamentos e imagens ruins não há como sair um pensamento bom, e da soma entre bons e ruins nossa natureza ferida sempre penderá para os ruins ou ao menos poluirá os bons. O mal pode ser conhecido pela iluminação do bem, que revela os contrastes mais sutis entre ambos, caso contrário seria impossível Deus julgar o mal (e os maus), pois não teria experiência vivida dele.
Mons. Jean-Joseph Gaume, La question des classiques ramenée à sa plus simple expression. Paris, 1852, pp. 5-7.
Mons. Gaume, op. cit., p. 19 (grifos do autor).
Omiti propositadamente as participações de Louis Veuillot publicadas originalmente em seu jornal Univers e depois em “Mélanges religieux, historiques, politiques et littéraires”, tomo VI, 1851-1856 e de tantos outros a favor da tese gaumista. Seu opositor, Mons. Dupanloup, mereceria um artigo só seu, o qual não escreverei. Há também as consequências dessa disputa fora do campo católico, que seria uma segunda frente de batalha, e que disputava também a utilidade (ou não) do ensino do latim.
“…Atque in primis, cum copertum exploratumque Vobis sit quantopere ad rei tum sacrae tum publicae prosperitatem conducat recta praesertim Cleri institutio, ne intermittatis concordibus animis in tanti momenti negotium curas, cogitationesque bestras confere. Pergite ut facilis nihil unquam intentarum relinquere, ut adolescentes Clerici in vestris Seminariis ad omnem virtutem, pietatem et ecclesiasticum spiritum mature fingantur, ut in humilitate crescant, sine qua nunquam possumus placere Deo ac simul humanioribus literis severioribusque disciplinis, potissimum sacris ab omni prorsus cujusque erroris periculo alienis ita diligenter imbuantur, ut non solum germanam dicendi scribendique elegantium, eloquentiam tum ex sapientissimis Sanctorum Patrum operibus, tum ex clarissimis Ethnicis Scriptoribus ab omni labe purgatis addiscere, verum etiam perfectam praecipue, solidamque theologicarum doctrinarum, Ecclesiasticae Historiae et Sacrorum Canonum scientiam ex auctoribus ab hac Apostolica Sede probatis depresemptam consegui valeant.” (grifos nossos)
“Neque vero te movere debent malevolae quorumdam obtrectationes ; quando quidem, uti refera, hoc unum in scriptis tuis propositum habuisti, ut eas normas in ratione studiorum defenderes, quas a Nobis probatas novisti : nempe ut ita cum classicis veterum ethnicorum exemplaribus, quavis labe purgatis, auctorum etiam christianorum opera elegantiora studiosis juvenibus legenda proponantur.”
Usamos a tradução da Paulus.
Livro 2, capítulos 21-25: Idolatria, pactos e conjurações de demônios, as superstições propriamente ditas, horóscopo, astrologia e mágica.
“non est cur patrii sermonis classicarumque, ut aiunt, litterarum studium ullum unquam morum sanctimoniae detrimentum afferat; christianus enim magister exemplum de apibus capiet, quae quicquid in floribus purissimum est, sugunt reliquumque dimittunt, ut in sermone de classicorum seriptorum lectione [P. G., t. 31, 570.] adolescentes sanctus Basilius docet. Quae quidem necessaria cautio – ab ethnico quoque Quintiliano proposita [Inst. Or., I, 8.] – minime impedii quominus christianus magister, quae vere borea et utilia in diseiplinas earumque tradendarum rationem tempora nostra intulerint atque inferant, ea adseiscat adhibeatque, secundum illud Apostoli: « Omnia probate; quod bonum est tenete » [I Thess., V, 21.]
Vide Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia IIae parte, questão 64, artigo 3.
Espetacular, Leonildo! Este artigo protege a honra de Gaume de tantas más interpretações de sua obra.