Por qual razão se convoca um Concílio na Igreja Católica?
A intenção original dos primeiros dezenove séculos: Difusão, guarda e defesa da Tradição católica
Na Igreja Católica é preciso pôr o maior cuidado para manter o que se crê em todas as partes, sempre e por todos.”
São Vicente de Lérins, Comonitório
O chamado “Cânon de São Vicente de Lérins”, que nos serve de epígrafe, assinala três características de reconhecimento da doutrina católica: universalidade, antiguidade e unanimidade.
A universalidade, como denota sua palavra, está ligada à nota de catolicidade da Igreja e diz respeito à universalidade na difusão espacial e temporal de sua doutrina. Portanto, não basta que determinada doutrina esteja difundida espacialmente pelo globo, senão também que ela esteja difundida temporalmente desde quando ela foi revelada até o momento presente. A antiguidade diz respeito à rastreabilidade da doutrina em questão a ponto de ela poder ser remetida até à Revelação dada aos Apóstolos e encerrada em São João1. E, por fim, a unanimidade diz respeito à concordância que a Tradição escrita e oral têm naquilo que ensinam e nos veio transmitido pelo Magistério, pelos monumentos da Tradição e pelos Padres da Igreja.
Como podemos atestar ao ler o Comonitório, o cânon leriniano é um todo orgânico que constata a firmeza da Verdade católica ao atribuir os requisitos necessários para se certificar de uma verdade da nossa fé católica. As três notas do cânon, de tão interligadas que são uma com a outra, parecem uma só nota com três aspectos: é como se o dogma católico só aparecesse aos nossos olhos sob esse prisma.2
Isso quer dizer que a comprovação da antiguidade absoluta (ou apostolicidade) da doutrina e de sua adesão por toda a universalidade da Igreja estão na base mesma de seu acordo presente e passado, servindo de raiz vivificante e fundamento estável. Não é à toa que São Vicente de Lérins busca como salvaguarda um status anterior e estável diante de uma situação calamitosa, pois em sua regra ele quis buscar uma segurança em tempos de calamidade. Ademais, é algo que salta ao cânone da razão até mesmo natural que só podemos entender o que é movediço a partir daquilo que é firme.3
Mas como esse consenso universal da Igreja — tão essencial ao cânon leriniano — se formava concretamente na prática? Como a Igreja assegurava que aqueles que deveriam ser os guardiães da Tradição fossem verdadeiramente dignos de confiança?
Santo Irineu de Lyon vem em nossa ajuda e nos leva ao próximo assunto:
“A verdadeira doutrina é aquela dos apóstolos, é a antiga difusão da Igreja em todo o mundo, é o caráter distintivo do Corpo de Cristo que consiste na sucessão dos bispos aos quais foi confiada a Igreja em qualquer lugar onde ela esteja; é a conservação fiel das Escrituras que chegou até nós, a explicação integral delas, sem acréscimos ou subtrações, a leitura isenta de fraude e em plena conformidade com as Escrituras, a explicação correta, harmoniosa, isenta de perigos ou de blasfêmias e, mais importante, é o dom da caridade, mais precioso do que a doutrina, mais glorioso do que a profecia, superior a todos os outros carismas.”4
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A escolha dos bispos e a preservação da Tradição
Como se escolhiam os bispos nos primeiros séculos da Igreja e como eles agiam para que fosse guardada a doutrina que lhes era confiada? Se entendemos isso, aí entenderemos a validade material do consenso denotado nesse todo orgânico leriniano.
Na Bíblia ficaram marcadas repetidas vezes instruções para que se escolhessem bem os guardiães da fé que ascenderiam ao episcopado. Diz São Paulo Apóstolo:
“Tu, pois, meu filho, fortifica-te na graça que está em Jesus Cristo, e o que ouviste de mim, diante de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, capazes combater de instruir também a outros” (2Tim. 2, 1-2)
Ora, aqui o Apóstolo instrui claramente que se escolham homens fiéis para guardar e transmitir aquela doutrina ensinada, pois ele mesmo dizia (Gal. 1, 8) que fosse anátema um Evangelho diferente daquele ensinado desde sempre, mesmo que viesse da boca de um anjo. Além disso, também disse:
“Porque é preciso que o bispo seja sem crime, como despenseiro de Deus; que não seja soberbo, nem iracundo, nem dado ao vinho, nem violento, nem ávido de sórdidos lucros, mas hospitaleiro, amigo do bem, ponderado, justo, santo, continente, que dê ensino seguro, conforme a doutrina, para que possa exortar segundo a sã doutrina e refutar os que a contradizem” (Tt. 1, 6-9)
Aqui novamente, em outra de suas epístolas, dá o tom da importância de se escolher um bom bispo, e chamava-o de “despenseiro de Deus”, ou seja, trata-se daquele que guarda as coisas de Deus e as distribui sabiamente sem violá-las. É um ecônomo dos bens divinos na terra.
Mas como os primeiros séculos aplicaram essa lição na escolha dos bispos e como eles preservavam a Tradição?
Para cumprir tão nobre missão, desde os primórdios seguiam-se basicamente quatro passos para se escolher e afirmar um bispo, conforme nos ensina o Cardeal Johann Baptist Franzelin, em sua obra De Divina Traditione et Scriptura.5
Primeiro passo:
Não somente se assegurava minuciosamente a pureza da fé do futuro bispo (através de provas certas), como após sua eleição era exigido que ele fizesse uma profissão de fé pública oralmente e por escrito a todos os seus fiéis e em cartas enviadas para os outros bispos. Sobre isso disse São Gregório Magno: “com efeito, quando nós fazemos a profissão de fé mútua e entre nós testemunhamos reciprocamente nossa caridade, o que estamos fazendo senão recobrir de resina a arca da Santa Igreja de Deus para que o erro não se adentre nela?”
Segundo passo:
Os bispos, cada um em particular e todos em conjunto, tinham o cuidado de mostrar explicitamente como a fé de cada um deles estava de acordo com a fé comum de todos, e eles tomavam muito cuidado para que ninguém parecesse fazer parte da Igreja estando de uma maneira ou de outra fora da fé comum. E pela mesma razão, eles tomavam muito cuidado para que essa fé comum dos bispos que se reconheciam como chefes de cada sé aparecesse com clareza. Nesse sentido, só se mantinha na lista passada dos bispos de tal ou qual diocese aqueles que se mantiveram sempre na fé e asseguraram a constância da doutrina.
Terceiro passo:
Se em determinado lugar começava a circular uma doutrina inovadora, era dever do bispo não somente reprimi-la em seu território, mas ainda advertir os demais bispos para que também se protegessem desse erro, e em primeiro lugar ele notificava o Pontífice em Roma, a fim de que o erro denunciado fosse autorizadamente condenado e excluído da Igreja. Assim, por exemplo, Santo Alexandre, bispo de Alexandria, denunciou Ário a todos os bispos católicos, e São Cipriano denunciou Felicíssimo e Fortunato ao Papa Cornélio. E também vários outros hereges e cismáticos eram combatidos pelos bispos da época.
Para esse mesmo fim de preservação da integridade católica, havia também o costume, durante uma viagem ou transferência de domicílio, de um bispo dar aos seus clérigos e fiéis uma carta de comunhão para que fosse apresentada ao bispo da outra diocese, para assim atestar que a fé daquele que se mudava ou viajava era pura e que sua visita não implicava uma ameaça à integridade doutrinal do rebanho visitado. Havia aí o desejo de evitar que homens que tivessem saído da comunhão da Igreja fossem espalhar seus erros em outras dioceses.6
Como se não bastasse, ainda havia um Quarto passo:
Para proteger a unidade e o acordo na fé, bem como para dar confirmação mais solene da antiguidade e condenar a novidade, podia-se recorrer a um meio extraordinário, mas igualmente eficaz: a reunião dos bispos em concílio. Este recurso aplicava-se tanto em caso de perigo, quando um erro corria o risco de aparecer, quanto em caso de necessidade, quando esse erro já tivesse aparecido. Um concílio podia reunir os bispos de uma mesma província ou todos os bispos da Igreja em um Concílio ecumênico7.
Como se pode ver, um Concílio é um último passo dado em um processo orgânico e provado de difusão, guarda e defesa da Tradição católica. Essa é uma nota essencial de todos os concílios regionais e ecumênicos aprovados pela Igreja até o Concílio Vaticano I em 1869. Eles serviram de “cimento da unidade”, como o disse São Cipriano, e iluminaram todo o orbe terrestre ao mostrar a verdadeira doutrina e a verdadeira unidade de fé, governo e sacramento da Igreja.
Com essa intenção em mente, podemos entender o que veio a dizer São Vicente de Lérins sobre o que se pode obter de um concílio:
Na realidade, que fim se propôs obter sempre a Igreja com os decretos conciliares, senão que se creia com maior conhecimento o que antes já se cria com simplicidade; que se pregue com maior insistência o que antes se pregava com menor empenho; que se venere com maior solicitude o que já antes se honrava com demasiada calma?8
Assim, um concílio ecumênico, por ter maior visibilidade, tem maior aceitação no corpo dos fiéis, diminui a audácia dos rebeldes e a união entre os bispos se estreita.
De outro modo, mesmo que todos os homens da Igreja se reúnam com outro motivo senão a difusão, guarda e defesa da Tradição católica, não parece à primeira vista que estaríamos falando de um Concílio ecumênico, mas de um conciliábulo ou uma reunião meramente mundana sem valor sobrenatural.
Fim.
(Assinado: Leonildo Trombela Júnior)
Ao menos é preciso que ela esteja lá implicitamente.
Esse cânon, ademais, não exclui futuras definições dogmáticas e um aprofundamento da Revelação, pois ele trata aqui somente das proposições de fé já explicitadas. Por exemplo: os dogmas marianos não eram proclamados na época de São Vicente.
Por isso mesmo que os tradicionalistas católicos (década de 1960 em diante) sempre tentam entender os dias de hoje a partir do final do pontificado de Pio XII (1958). Não se trata de sedevacantismo prático, mas da aplicação prática daquilo que São Vicente de Lérins prescreveu ao sondar o que diziam os santos e entendidos da religião católica.
Contra as heresias, livro IV, Capítulo 33, n.º 8. Na tradução brasileira e espanhola usa-se o termo “gnose” em vez de “doutrina” nesse trecho. Mas, dentro do contexto da obra, obviamente Santo Irineu usou o termo “verdadeira gnose” querendo dizer “verdadeira doutrina”, na medida em que se contrapõe às falsas doutrinas dos gnósticos da época, que por sua vez diziam pregar a “verdadeira gnose” (ou verdadeiro conhecimento). Substituí os termos da citação para preservar o leitor desavisado e despreparado que não lê notas de rodapé. Então, nessas duas traduções, encontra-se escrito “A verdadeira ‘gnose’ é aquela dos apóstolos...”
Fiz apenas um resumo do que se diz acerca desse assunto na obra, portanto não convém citar página por página. Para este texto usei a edição francesa traduzida pelo Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX: Cardinal Jean-Baptiste Franzelin. La Tradition. Courrier de Rome, 2008, p. 114ss.
Imagine que não havia telecomunicações e meios de identificação tais como existem hoje; portanto, antes de deixar alguém se aproximar de seu rebanho, um bispo zeloso da doutrina católica precisava de garantias de que sua grei não seria contaminada. Uma carta de recomendação com o selo episcopal era essa garantia para um padre ou fiel que viajava para outra diocese. O nome dos bispos de doutrina ou vida duvidosa também era retirado do catálogo de bispos daquela diocese, cujos nomes escritos remetiam até à sua fundação. Este era o grau de zelo pela integridade católica nos primeiros séculos.
“Ecumênico” refere-se à participação de toda a Igreja, e não só um grupo de dioceses ou de países. De forma alguma “ecumênico” quer dizer “com outras religiões”. Uma reunião doutrinal com outras religiões chama-se “apostasia”. Certamente é lícito convidar algum membro de uma comunidade cismática para um concílio, tal como foi feito no Concílio Vaticano I, mas sempre na intenção da conversão do convidado, jamais na intenção do aggiornamento.
São Vicente de Lérins, Comonitório.
Gratias!
Vou ler com a maior atenção.