Nota da tradução: Hoje começamos uma série de doze capítulos da coletânea “A sociedade cristã”, publicada no tomo II de “Pages choisies du Cardial Pie”, Librairie H. Oudin, 1916, pp. 195-261”. Esta coletânea, a partir de agora publicada, comporta excertos sobre temas sociais e políticos extraídos das obras completas do Cardeal Pie de Poitiers. Para conhecer a vida deste eminente cardeal, autor deste e dos próximos textos, recomendamos ler nossa postagem contendo um breve apanhado de sua vida.
“Contra ti só pequei” (Sl. L, 6)
Carta pastoral do então Monsenhor Louis-Edouard Pie, na ocasião da sua tomada de posse da Sé de Poitiers, 25 de novembro de 1849.
Não estamos suficientemente familiarizados com a observação das coisas para nos determos em algumas superficialidades que podem ainda deslumbrar; não podemos ignorar o fato de que a sociedade humana é presa de um mal mais íntimo, mais profundo e mais devorador do que é possível dizer. A lógica das paixões, longamente suspensa e retardada no seu progresso, produziu finalmente as conclusões inevitáveis dos princípios estabelecidos pelos séculos anteriores. Estamos vivendo no fatal período das consequências, das consequências extremas. Todos os dias, as últimas esperanças se desvanecem; os terríveis problemas, por um momento postos de lado, voltam a confrontar-nos; qualquer solução humana é agora impossível. Só há uma alternativa: submeter-se a Deus ou perecer.
Sim, caríssimos irmãos, submeter-se a Deus. Permiti, pois, que vos revelemos a grande praga a grande praga da sociedade e que vos falemos um pouco da natureza particular dos tempos que Deus nos reservou. O que caracteriza essencialmente a época moderna é que, por uma divisão e uma oposição mais acentuadas do que noutras épocas, o mundo foi separado em dois partidos: o partido de Deus e o partido do homem, ou, se preferirem, do gênio orgulhoso que o inspira. Nunca a luta foi mais aberta e mais direta entre o homem e Deus; nunca uma geração rompeu mais absolutamente todos os pactos com o céu; nunca uma sociedade se dirigiu mais resolutamente a Deus com as audaciosas palavras: “Retira-te de nós”1; nunca o homem agiu mais insolentemente como deus na Terra. Já se acreditava vencedor. Ele havia banido a divindade do domínio de todas as coisas aqui embaixo; ele reinava supremo; e, longe de qualquer mal que lhe acontecesse2, tudo prosperava. O velho sonho do orgulho humano estava prestes a tornar-se realidade: o homem seria o seu próprio deus3.
Parecia que o Filho da perdição, anunciado por São Paulo, tinha aparecido na Terra; ou, pelo menos, todos os elementos que ele devia reunir estavam à espera de se juntarem em uma única personificação para formar o Anticristo anunciado nas Escrituras. Dedicado à mais constante oposição, opositor de todas as crenças, de todas as afirmações de qualquer espécie, o homem tinha também derrubado tudo o que tinha o caráter verdadeiro ou falso da divindade; tinha aniquilado tudo o que é objeto de culto; o respeito tinha desaparecido da Terra. E se a ideia de um Deus ainda permanecia, era porque o homem, substituindo-se ao seu autor, tinha feito do universo um templo do qual ele se apresentava como o deus4. A guerra estava assim lançada; era um duelo entre a criatura e o seu Criador.
A batalha era desigual, e sabíamos qual dos lados ganharia e qual perderia. Quanto mais o homem parecia triunfar, mais prevíamos a sua ruína iminente e, para usar as palavras dos livros sagrados, mais prevíamos uma dessas catástrofes cujas explosões deixam um longo eco nos ouvidos de todos os que as ouvem5. Tínhamos aprendido com a história que Deus esconde as coisas durante muito tempo, que por vezes parece ceder aos seus inimigos, mas que essas derrotas aparentes e momentâneas não passam de recuos inteligentes e hábeis da parte da Providência, após o que ela retoma a sua posição e desfere golpes decisivos. Mais de uma vez nos pareceu que os espíritos celestiais, cansados dos longos sucessos da rebelião triunfante, tomaram emprestada a linguagem dos profetas e disseram: “Levanta-te, ó Deus, não prevaleça o homem contra ti6. Levanta-te, ó Deus, não prevaleça o homem (malvado), sejam julgadas as gentes em tua presença7. Ó Senhor, incute-lhes terror, para que as gentes saibam que são homens8”.
Eles continuavam a falar. E enquanto o orgulho humano continuava a crescer9, de repente o povo de Deus titubeou no seu altar. Não foi um relâmpago, foi um momento de respiração que fez justiça ao colosso10. O comércio, o prazer, o poder, o dinheiro, a prosperidade, a indústria, tudo se desmoronou ao mesmo tempo. Lembra-se de Tiro, outrora coroada, cujos mercadores eram príncipes e cujos comerciantes eram os homens mais ilustres da terra11? Mas porque se esqueceram do meu nome, diz o Senhor, sentiram a força do meu braço; e puseram-se no lugar dos príncipes, para caírem como eles12. Mas nem tudo ainda está acabado, e eis outros oráculos: “Atacai Babilônia de todas as partes, todos os que sabeis manejar o arco; combatei-a, não poupeis as flechas, porque ela pecou contra o Senhor. Lançai, de todos os lados, um grito de guerra contra ela; (já) estende as mãos, caem as suas torres, são destruídos os seus muros. É a vingança do Senhor; tomai vingança dela, fazei-lhe o mesmo que ela fez”13.
Tais, e ainda mais terríveis, são as ameaças cujos efeitos sentiremos em breve, se não nos apressarmos a voltar para Deus.
Porque, caríssimos irmãos, é aí, e não em outro lugar, que devemos procurar a causa de todos os nossos males. Este é o triste começo de todas as nossas faltas e, consequentemente, o ponto de partida de todos os nossos infortúnios. Há muito tempo derrubamos o primeiro trono, o de Deus; negamos a primeira soberania, a soberania de Deus. Todos nós fomos culpados. Os grandes conspiraram com os pequenos, e os pequenos com os grandes. O poder e o conhecimento também deram as mãos à rebelião. A bandeira da independência foi erguida sobretudo contra Deus. E, na verdade, todos os nossos outros erros são insignificantes perante este primeiro ataque: “Contra ti só pequei”14.
Ora, na ausência da verdade revelada, bastaria a sabedoria pagã para nos ensinar que um povo só conserva o seu império na terra na medida em que professa a dependência de Deus; que Deus é o princípio e o fim necessário de todas as coisas; e que a divindade desprezada, ou apenas negligenciada, acaba por desencadear mil pragas sobre as nações ímpias ou indiferentes. É por isso que, apesar de toda a grande obra de reconstrução social empreendida por tantos arquitetos ao mesmo tempo, sofreremos, apesar de nós próprios, as consequências das faltas dos nossos pais, enquanto não reconstruirmos, no seio da sociedade, o templo derrubado. Nada se fará enquanto Deus não for colocado acima de todas as coisas humanas, enquanto o seu direito não for solenemente reconhecido e respeitado de forma séria e prática. Fala-se de um grande partido de ordem e de conciliação. Só um partido pode salvar o mundo: o partido de Deus. A salvação só pode vir da abjuração dos nossos sonhos de independência do Ser soberano e pela submissão a Ele. Para isso, devemos erguer entre os homens a bandeira do Príncipe da milícia celeste, com o seu lema: “Quem como Deus? Quis ut Deus?” — Conciliação? Sim, sem dúvida; mas temos mais e melhores coisas a fazer do que aproximar os homens; a grande coisa a fazer é reconciliar a terra com o céu. Não se enganem: a questão que agita o mundo não é uma questão do homem para com o homem, é uma questão do homem em relação Deus.
E tenhamos o cuidado de não adiar o dia desta grande conversão social15, pois quem sabe, nas circunstâncias em que nos encontramos, o que nos poderá trazer o dia de amanhã16? Não esperemos por capitulações secretas, por reconquistar o que o próprio céu nos nega. O reinado da conveniência acabou; é preciso que comece o reinado dos princípios. De que outra forma espera-se que a sociedade se mantenha unida? Atacada tanto de cima como de baixo; um Deus irado sobre a sua cabeça; paixões populares inflamadas sob os seus pés; o céu lançando os seus raios, a terra vomitando a sua maldade: como, entre estes dois fogos cruzados, não pode sucumbir e perecer? Para resistir a uma das potências opostas, é preciso fazer as pazes com a outra; é preciso submeter-se a Deus, para O colocar do nosso lado e combater com êxito os nossos inimigos. Quererá a nossa sociedade esperar, como Antíoco, o momento extremo da sua dissolução, da sua decomposição fétida, para reconhecer então, mas demasiado tarde, que é justo ser submisso a Deus, e que não convém a um mortal competir com o Altíssimo17?
É assim, caríssimos irmãos, que julgamos os tempos e os momentos18 em que aprouve a Deus colocar-nos entre os pontífices encarregados de governar a sua Igreja19. Assim, se nos perguntar quem somos, a que partido pertencemos, responder-lhe-emos sem hesitação: Somos, seremos entre vós o homem de Deus20; pertencemos e pertenceremos sempre ao partido de Deus; consagraremos todos os nossos esforços, consagraremos toda a nossa vida ao serviço da causa divina. E se tivéssemos de trazer conosco uma palavra de ordem, seria esta: Instaurare omnia in Christo: Reunir em Cristo todas as coisas21.
Jesus Cristo! Ah, sentimos uma profunda emoção ao pronunciar pela primeira vez entre vós este nome sagrado, este nome salvador que tantas vezes vos repetiremos. “Porque ninguém pode pôr outro fundamento, senão o que foi posto, isto é, Jesus Cristo22. E não há salvação em nenhum outro, porque, sob o céu, nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos”23, exceto o nome de Jesus. Saibais bem, caríssimos irmãos: o Deus de quem seremos ministro24 e embaixador25 entre vós não é esse Deus vago e complacente cuja autoridade tutelar o materialismo invoca hoje para defender os seus prazeres e os seus ídolos contra os novos invasores, decidido a não Lhe pagar nenhum tributo e sobretudo a não Lhe fazer nenhum sacrifício. O nosso Deus é aquele que deu a sua lei aos homens, que desceu à terra e falou na pessoa de Jesus Cristo, seu Filho e seu mensageiro. Fora de Jesus Cristo, não conhecemos nenhum Messias, nenhum Revelador, nenhum Salvador. E Deus e Jesus Cristo só se encontram para nós na Igreja: quem não ouve a Igreja é pior aos nossos olhos do que um infiel.
Por isso, caríssimos irmãos, recolocai tudo de novo sob a autoridade legítima de Deus, de Jesus Cristo e da Igreja; combatei por toda a parte esta substituição sacrílega do homem por Deus, que é o crime capital dos tempos modernos; concluí uma segunda vez em favor dos preceitos ou conselhos do Evangelho, e em favor das instituições da Igreja, pois todos os problemas que haviam o Evangelho e a Igreja já tinham resolvido: a educação, a família, a propriedade e o poder; restabelecei o equilíbrio cristão entre as diversas condições da sociedade; pacificai a terra e povoai o céu: tal é a missão que teremos de prosseguir entre vós, na medida das nossas forças.
Continua…
Job. XXI, 14.
Eclo. V, 4.
Gen., III, 5.
2 Tes. II, 3.
Jer. XIX, 3.
2 Crôn. XIV, 11.
Sl. IX, 20.
Sl. IX, 21.
Sl. LXXIII, 23.
2 Tes. II, 8.
Is. XIII, 8.
Sl. LXXXI, 7.
Jer. L, 14-15.
Sl. L, 6.
Eclo. V, 8.
Prov. XXVII, 1.
2 Mac. IX, 11-12.
1 Tes. V, 1.
Atos XX, 28.
1 Tim. VI, 11.
Ef. I, 10.
1 Cor. III, 11.
Atos IV, 12.
I Cor. IV, 1.
II Cor. V, 20.